terça-feira, novembro 25, 2008

Pollock

Onde você estava com a cabeça naquela noite em 56 quando você olhou a lua através daquelas lentes umedecidas da sua alma? Eu posso enxergar o brilho de seus olhos, o fugaz momento entre a paixão e o clique dos anunciadores de sensações ao nosso cérebro. O que quero dizer é que posso imaginar todo aquele impulso elétrico do ar passando para as devidas fases neurológicas de explicação do surgimento da paixão possuindo seu espírito! Que noite doente, Pollock, meu amigo...foi um porre e tanto.
Não posso deixar de imaginar você naquele carro sem uma trilha como “Good old funky music” dos The Meters, mas o anacronismo é tamanho e o perigo de o leitor achar que estou tirando uma, que estou com parcimônias de um sádico ou polemista são grandes.
O fato é, Pollock, descemos ao mesmo inferno, você é meu chapa. É tudo.

Porra, queria escrever como você pintava! Sem o dedo (no computador), sem o pincel...apenas com as gotas de tinta caindo no papel, trazendo a paz dos campeões...(como no café da manhã dos campeões, é claro) fluído amistoso,eu e o papel, intactos, pronto para uma cópula além do manifesto carnal, como duas águias se enroscando...
Arte, arte. Que bosta é a arte. Mas se não for ela, qual ela?
Mas chega de reflexões acerca de Pollock.

Meu quarto

Quem sou eu sem estas velas acesas? Sem “what more can i do”, do The Meters rolando na caixa de som...e pensar..flutuar por estes vapores ruminantes do amor, da enfim tranqüilidade.

Pensando bem, porra...o título disto daqui deveria se chamar “The Meters”.
Fazer o que, é a volúpia da arte.

FMAN – 16/07/08

Chapéu-s days

terça-feira, setembro 16, 2008

Está além do meu saco cheio

Está além de nós e tudo o mais
Está nas pernas dos inválidos
nas catedrais, nos vitrais, nos anais!
Está perdido e não quer ser encontrado
caminha de lado, com o cigarro de canto
tem gota, parestesia, síndrome do pânico
um pingo de berruga nas entranhas.
está para lá da freada brusca de um carro alucinado
Àa 5 e 45 da manhã
quem sabe na boca dos nativos
desta terra estranha e desolada.

E quando a música acaba
só resta estar na ante-sala do inferno
fazendo coro com os anjos e os santos
não duvido que alguém arranque “It´s a wonderful life’
de qualquer forma a gente se vai
é um salto pequeno prum abismo tão enorme (snif snif)
but fight against the life, brotha!

Não está mais lá.
não está nem em quem
mais está
pra lá de Bagdá (: ) )
(Não está mais na rima infantil, of course)

Gentlemen, está mais perto do que imaginávamos!
não tão caro como queriam os caminhões às 6 da manhã
encurtando nossa noite.
nem tão castrador quanto nossos espermas que contemos
com a fina foice dos enquantos.
(O fato é que há um certo “encanto” com rimas pobres)
Nos enquantos não sabemos o fim, tampouco lembramos o início.
Dura arte. Que a semente da vida transite´ntre um e outro tudo bem
mas uma hora temos de gozar, por Deus.
Então aquilo que “está” neste poema (como assim?)
que se foda.

sábado, setembro 13, 2008

Resgate dos mitos populares da infância ou a sabedoria do folclore do terror n.º 4

O Bicho-papão é um ser com forma em “oito”. Acima da curvatura anterior ficam seus longos caninos acompanhados da bocarra. Os olhos estão por ali também e, no fundo, olhando para aquele sorriso maligno e para aqueles olhos perversos, pode-se definí-lo como um pac-man degenerado. Ou uma versão corrompida de um smile. Ele avança ameaçadoramente para frente enquanto fala.
- O quê? A Cuca? A cuca não vem pegar mais...ehehehehe...não vem, não. Eu sei.
Ele tenta abocanhar a mão de uma das pessoas, mas não consegue.
- Alguém pode me dar água no copo? – aperta os olhos em súplica. – Ah, droga...mim, eu...não ter educanação. É, é educanação sim. Iaoiaoaiaoiaoaiaoail....hihiihi...prometo não mordê mais ninguém. Sua voz grave ecoa pelo salão.

sábado, agosto 16, 2008

Resgates dos mitos populares da infância ou a sabedoria do folcore do terror n.º 3

O mão preta se recosta no sofá, estrala os dedos rapidamente e com modos sombrios nos comunica por meio de L.I.B.R.A.S:
A geração 90 é a última que vai poder dizer uma coisa do tipo “nos meus tempos de infância eu brincava nas ruas, ficava sentado na calçada, em frente ao prédio às 3 h da manhã”. O caos e o terror paranóico são coisas do começo do século XXI. Lógico, houveram manifestações curiosas do fenômeno há mais tempo, mas tais o eram apenas como precursores. Naquela época, você conversava na calçada com seus amigos imberbes, simplesmente curtindo os ruídos da madrugada, sentindo aquele mistério ainda não desvendado da noite. Hoje, o mesmo prédio está com cercas e interfones, e se você sentar encostado no portão ou na calçada, vão pensar que você é um traveco ou garoto de programa (se homem) ou puta (se mulher). Existirão seguranças emburrados fazendo ronda de dois em dois pelas ruas ao redor por causa daquele hospital que tem na frente do prédio, mais antigo do que você próprio. É terrível pensar no crescimento das cidades e que estes são OS tempos novos. É um mundo pervertido, insano. O mão preta estica o pai-de-todos e o fura-bolo na beira da janela, com o cata-piolhos, o mindinho e seu vizinho apoiados no sofá. Está pensativo. Um grande silêncio se impõe.

quarta-feira, julho 30, 2008

Da Série "Resgate dos mitos populares infantis - ou a sabedoria do folclore do terror n.º 2

A véia Coró se espreguiça na janela, coça um saco imaginário, cospe no chão. Dá uma olhada lá pra fora, arrebitando os beiços carcomidos e a boca sem dentes, e depois de um momento pensativa diz:
Aquela velha sabedoria de que “Boa vida tem o ator pornô” pra mim ta ultrapassada. Um ator pornô já conquistou a realização total da felicidade, já chegou no ponto, não tem graça. Porque não existe expectativa. A felicidade real é ser um cara qualquer que cuida da técnica, que tá sempre por perto, um contra-regras ou iluminador, por exemplo. Sentindo o dia inteiro cheiro de buceta e imaginando com aquela intoxicação maravilhosa toda sonhos de candura e golfinhos pulando da água. É, a felicidade é isto. A eterna possibilidade de imaginar.

Da Série "Resgate dos mitos populares infantis - ou a sabedoria do folclore do terror n.º 1

Mr. Crowley na caixa. Vento brando na Curitiba silenciosa e vasta.
(Qualquer um que está no quarto faz um comentário como “Este caso é sinistro ou aquele caso é sinistro...”)
O velho do saco apenas dá uma pitada de seu cachimbo, pisca um olho como um cantor que arranha a voz antes de começar a cantar e diz:
Sinistro seria fumar uma bomba, daquelas de deixar você perturbado, e sair na Iguaçu de madrugada para pegar um traveco e ainda por cima, estar sem grana pra pagar. Esta seria uma bad trip total. Posso imaginar toda aquela energia vibrante e um tanto paranóica da cannabis urrando na sua cabeça e você pensando: “Puta merda, tou aqui neste quarto com este traveco, e não tenho grana. O cara vai sacar a arma logo logo (sem duplo sentidos).” Isto seria uma trágica noite curitibana.

segunda-feira, julho 21, 2008

Breve anotação da madrugada (ou noturno n.º 2)

Eu só vejo loucura por onde passo. É uma patologia de meus olhos, entendem, uma vez que ele é o filtro desse simulacro de realidade chamada vida. Olharmo-nos em espelhos retorcidos, figuras angustiantes produto de suas próprias mentalidades capciosas ou então fogosas, quem sabe? Eu me lembro de Atlantis, ou não, talvez seja Atlântida, diabos, aquela cidade perdida na história e no tempo, a civilização incrível, a destruidora cultural avançada deusa dos verdadeiros homens.
Através de um filtro razoável é possível dialogar com grandes criaturas do passado. Manter aquele, hum, papo amigável (piscada), sem pretensões. Sócrates, por exemplo. Por meio de uma música como “Rear View Mirror” eu consigo cantar o filósofo-mor a cuspir suas realidades possíveis. Com um drible de lábios mafiosos é que é possível encantar o mundo, um meio de solavancar as estruturas sólidas, chacoalhar a cabeça dos que estão enfurnados em máquinas como aquelas de fazer permanente. "No final das contas, teu tempo é um tempo estranho. É um verdadeiro salão de belezas cheio daquelas peruas ostentadoras enfurnadas dentro de máquinas de fazer permanente." O tempo permanente é uma ilusão, caro Sócrates. Necessitamos de uma boa dose da senhora História para cogitarmos uma possibilidade de entendimento de nosso universo próprio. O tempo é intangível, na medida de que ele não aflui sozinho, mas precisa de sopro de vento que lhe empurre. Não importa a direção, mesmo quando damos uma direção certa ao nosso fôlego, há possibilidades de desvio. "Você tenta disfarçar o imenso embaraço que tem pela tua época." Eu estou na época certa, aquela em que precisamente nasci. A época em que nascemos será sempre a perfeita para nós, pelo simples fato de que FOI NELA em que nascemos, entende???
Enfada-me a conversa com Sócrates. Deixo ele para me permitir um prazer mais sincero: um Marlboro e uma cerveja. Talvez seja isso meu tempo, um bocejo seguido de cigarros e cervejas. Enquanto uma vela se apaga lentamente às 05:46 da manhã de segunda feira (bad trips quando lembro disso) eu fico aqui tentando obcecadamente definir meu Tempo. Me embaralho com referências pop, suores ansiosos, pílulas para dormir, um grande contentamento pela uniformização pela passividade, pretensões publicitárias de ativistas pré-históricos, e por aí vai. O fato é que, definitivamente, tento colocar na cabeça que não tenho tempo para este blá, blá, blá todo.
Quem sabe eu não veja só loucura. Existem momentos bons, agradáveis. Atlântida está bem aqui, muito provavelmente nalguma música. Os olhos podem ter filtros, mas os ouvidos não. No fundo, é desta maneira que deve funcionar aqui na nossa economia: arranca-se um braço para poder utilizar outro.
Hora de terminar.

domingo, julho 20, 2008

As tetas e o câncer de mama do meu tempo

“preciosos nódulos de seios
prazer de um degelo
tumba de qualquer desejo”

(em que o autor descobre a patologia de nosso tempo)

escorrendo por esta noite mórbida de céus atômicos, um tanto dóceis, delicados talvez? quem sabe, nesta noite em que temos apenas a presença da rainha branca formigando lá no céu, anões de jardim nas salas de estar dos vizinhos, o amor rebentando, chepas esgotando-se e a preciosa veia artística dos sedutores aflorando em paisagens nuas sem sentido, o ignóbil fruto sedutor dos artistas emergindo de pátios de recreação, com um parquinho bem sotisficado, tem de-se aquelas casinhas toda trabalhadas, com mil e um brinquedos, como o escorregador, a balança feita de pneu, umas argolas esquisitas e toda parafernália. Eis o tempo que se foi, o meu tempo, quando não existiam destas coisas. Mas meu tempo não importa, não é o tempo de ninguém, não pertence aos nodosos bêbados das noites excitantes como um quadro hiper-moderno numa pretensa exposição de arte moderna de uma bienal instigante e grandiloquente (as obras de arte falam, não ficam mudas, é bom ressaltar isto), nem aos insetos intelectuais tsc tscando em torno de nossas orelhas em todos estes lugares meio cool que insistimos de visitar por pensar em qualquer coisa profunda em nós, alheia a toda e vã filosofia, enfim, por merda nenhuma! , não pertence obstante aos decentes homens de terno caminhando austeros e bem resolvidos. Meu tempo não pertence a ninguém! Meu tempo está dissoluto, entranhado em meus dentes para ser mastigado, até eu decidir cuspir esta porcalhada pelos banheiros infestados de vômitos de uma bodega qualquer pelos arredores da city. Não há meu tempo, porque eu ainda não o criei, that´s all.

“flácidos seios
porque a idade veio?
para trazer solidão ao desejo”

(A conclusão de FMAN é atacada pela consciência negra de seu envolvimento com a patologia e documenta a descoberta como “Análises egocêntricas”)

estamos na era das tetas caídas. Pudera, chuparam todas. Eu mesmo dei umas bicadas em algumas por aí, é claro, orgulho inclusive (como na chamada popular) mamar nas tetas do governo por um bom tempo. Há que se mamar também em tetas beatíficas, para termos certa dose de paz espiritual. Para os prazeres da carne,as tetas das ninfas que habitam nosso ecossistema.
Entretanto esta é a era das tetas caídas e eu faço parte dela.

Não há morte mais singela para o artista.

quarta-feira, junho 18, 2008

Revolução: indo do nada para o nada

Estou completamente horrorizado. Estupefato. Indignado. Não me demorarei, sou um leigo em história, um completo alienado, um destes alunos que passou pelos grandes acontecimentos históricos como um aluno medíocre classe média repetindo e decorando os nomes e datas para num futuro passar no vestibular. Merda. Também não quero ser panfletário. Vou ao que interessa: Li um livro genial e assustador: Doutor Jivago, que narra os acontecimentos da Revolução Russa. E pra ser direto, digo que as Revoluções, como me ensinaram (elas próprias, digo) até hoje, levaram de nada para nada. Tudo um jogo de poder, cujo processo de instauração serve como desculpa para todo tipo de atrocidade e violência em nome de "algo maior". Revivo aquilo que Raskolnikóv já proclamava no nível individual. Oh, merda, cada vez mais pessimista. A raça humana é uma merda. E não se iludam, eu também me incluo na privada.

terça-feira, maio 06, 2008

Trapalium ( I ) - Parte final

Ora, não me parece crível que a passividade conste no rol de defeitos de E. Em verdade, era homem de temperamento explosivo; um tipo que, se pego num engarrafamento e deixasse um carro que vem de uma rua transversal passar a sua frente e, por safadeza, um outro carro logo atrás do beneficiado se aprouvesse da oportunidade para também passar a frente, iria sair do carro espumando, chegaria até a janela do gatuno e espancaria o vidro com veemência e os olhos em fúria, um demônio descontrolado e indignado. Um tipo que, certamente influenciado pela carga estressante de seu trabalho aliado ao perfeccionismo obsessivo, se atrapalhado pelo filho mais velho, iria descarregar o peso de sua sandália de couro no lombo do pequeno infeliz por mera impulsividade. Mas não nos precipitemos a nos pasmar com traços tão contraditórios; E. era de fato homem de ética e dedicação honráveis, e se ponderarmos um pouco que seja nas incontáveis fábulas erguidas sob a égide da pretensão de se construir uma moral humana, tão recorrente em nossos meios de educação vigentes, veremos que o impulso da agressividade não convive diretamente com os ditos valores da virtude. É a velha dicotomia do bem e do mal, não me cabe discorrer sobre tema tão longínquo. Basta deixar claro que fábulas são fábulas, e o que ocorre em nossos meios, aqui no mundo de baixo dos seres que se acotovelam, é a convivência harmônica (em certo sentido específico) de diversos e diferentes valores. Digo que é muito provável, se nos esforçarmos um pouco, imaginar um homem severo com suas obrigações morais, éticas e profissionais ser também dono de uma geniosidade perturbadora e irrequieta, propensa a desequilíbrios de vez em quando. Tinha ele gênio forte, sem dúvida, e se voltarmos a pensar em suas obsessões e dedicações, creio ser bastante coerente a figura total que compõe suas multiplicidades e variações. Do mesmo feitio, sua paixão pela arte e pela liberdade, expressas em tamanho amor pela vida e pelas aventuras tornam-se mais palpáveis.
Existe uma anedota narrada nas memórias que acho bastante emblemática e um tanto reveladora sobre os dotes amotinadores, escondidos sob a camada suave da ironia. E., quando duma abordagem em pleno centro da cidade solicitado para uma entrevista em que deveria dizer o que achava do atual governo, respondera com impropérios e expressões das mais criativas. A reportagem nunca foi ao ar, e E. gabava-se ao contar a sua família o ocorrido: encontrava ele nesta pequena insurreição motivo de garbosa jocosidade, e pelos modos como expressa o acontecimento no texto, posso adivinhar sua alma se gabando de tanta espiritualidade. Por outro lado, nada há de espirituoso nos reais significados de seu ato, no que há de mais profundo dentro das causas de suas bravatas perante às instituições políticas; aqui só permanece o perigoso sentimento da insatisfação e da marginalidade.
É neste ponto que chegamos ao acontecimento mais importante de minha narrativa, e do qual já mencionei que nada tenho a acrescentar para decifra-lo. O fato é que, a partir de certo momento, E. começou a agir de forma estranha. Nunca foi entregue a casos extra-conjugais ou não era o que se comumente designam por um “galanteador”, mas fato era que a relação com sua esposa tornava-se dia e dia mais distante. Sua atenções eram motivo de enigmas e proposições. Não se dedicava ele às tarefas conjugais, tampouco às domésticas. No trabalho, sua postura alternou-se de forma brutal: aparecia em bermudas jeans, ostentando um velho colete preto sobre o torso; cresciam o número de tatuagens na pele. Não houve, porém, queda em seu rendimento. A modificação ocorria a nível mais sutil, em degrau que despontava para os andares contíguos mas ao mesmo tempo distantes dos mais informais; transcorriam no plano comportamental, e este tipo de concatenação de sevícias (para o escalão corporativista) era simplesmente intolerável. Entretanto, devido a enorme popularidade de E., nada era feito. Ninguém tinha coragem de se meter no caminho do “homem com o gavião na mão.” Esta situação permaneceu por meses a fio; sua esposa, ao demandar explicações ou, daquele modo peculiar das mulheres, querer descobrir nas entrelinhas o segredo que lhes desespere os sentidos (quando na verdade, o que esperam é que mais e mais desespero lhe advenham, conquanto menos sentido tenham), recebia apenas remissas vazias e inconclusivas. O Mr. Michaelis nada dizia. Contentava-lhe apenas que sua cadeira de couro ainda possuísse a graciosa forma de suas ancas e o bolso o tamanho apropriado para o dinheiro que vinha diretamente de sua conta todo final de mês.5
E então sucedeu-se o misterioso ato final da peça que E. vinha orquestrando sabe Deus desde quando. Num dia friorento de julho, E. simplesmente desapareceu de vez de nossa província, sem deixar qualquer rastro. A família acordara sem a presença do progenitor e guardião. Não estava ele na cama, não estava no banheiro fazendo a barba impecavelmente, nem no corredor passando seu terno ou vestindo-se com o alinho habitual. Não havia tampouco suas roupas. Tudo fora levado. Ninguém percebera sua fuga. E desde então, nada ficou sabido de E., nem sobre seu paradeiro, nem de suas posteriores aventuras por esta terra estranha e imensurável. Nada até hoje, quando seguro em minhas mãos as memórias. E mesmo com este sinal de que, sem dúvidas, em algum lugar o homem ainda passeia com suas tatuagens e o charme de seu mistério estampado em seu rosto, nada se revela de sua atual situação ou de suas motivações. É aqui que acabam, do mesmo jeito que começaram, suas parcas revelações, que mostram-se mais de cunho meditativo ou psicológico que efetivas.
Não obstante, devo acrescentar, talvez para espanto de meus leitores, quem sentiu mais a falta de E. Se os fatos fossem outros, seria a última pessoa que poderíamos esperar - o nosso ilustre Mr. Michaelis. Pois a fuga de E. não se deu de forma simples e desprovida assim de graça; o fato em si, esta fuga repentina, o homem que some da noite para o dia abandonando sua família não constitui motivo de tanto falatório; esta espécie de labor deixemos às donas de casa e às fofoqueiras beatas de nossa santíssima igreja; a verdadeira polêmica ficou pelo grand finale profissional de E., o qual se revela tão inesperado que gera as mais prodigiosas reações naqueles velhos círculos que já comentei. Pois E., durante nove meses, pôs-se a dedicar sua competência no mais árduo e difícil dos trabalhos: a gatunagem, e de forma que não me proponho entrar em detalhes aqui, desviou de seu principal cliente, o banco, uma quantia com zeros suficientes para fazer inveja a qualquer homem com o nome destacado nestas revistas de economia. O dinheiro nunca foi rastreado. E podemos adivinhar em que maus lençóis ficou o renomado Mr. Michaelis.
Em não muito diferente situação ficou a esposa e os filhos. Foram anos na justiça para que se despertasse a piedade de um juiz em condescender a não-obrigatoriedade do pagamento das dívidas a uma mulher casada com comunhão de bens.
Assim, registro o final desta fantástica narrativa: obrigo-me a revelar que não descobri o verdadeiro destinatário do envelope que me chegou em mãos, o que seria de muito bom grado para saciar os anseios de minha imaginação. Digo desde já que esforcei-me por encontrar a revelação de tal mistério, mas mesmo os funcionários do serviço postal não souberam me dizer; a papelada toda foi parar em minha residência à causa de confusões burocráticas e erros dos mais baixos escalões administrativos. O mensageiro por parte do remetente havia dado um endereço, o mensageiro por parte do serviço postal ouvira outro, e nisto, acrescido da desinformação da pessoa a quem se destinava o pacote e à fraca memória do funcionário, residia toda o imbróglio. Acredito, no fundo de minhas faculdades mais caras, que o pacote venho a pessoa certa; que de certa forma, venho como uma mensagem, e a maneira como chegou não deixou nada a dever ao jeito como tudo começou – envolto em mistério e cheio daquele sentimento nativo dos românticos, o velho sabor da despedida que nunca diz adeus.
(...)
5Atenta-se para o que parece ser mais um julgamento pessoal do autor.

segunda-feira, abril 14, 2008

Trapalium - (I) - 3.ª parte

Outrossim, sua regular carreira acadêmica não provocou a atenção de qualquer pessoa, incluindo seus próprios genitores, de maneira a lhe prejudicar ou fomentar questionamentos a respeito do alcance de suas faculdades mentais. Era esforçado num certo sentido, e isto bastava para qualquer um; o brilhantismo de seu comportamento acobertava qualquer possível falha nos ramos periféricos de sua vida. No máximo era possível dizer que o excesso de suas qualidades lhe permitia uma espécie de desleixo para com os estudos, asserção que pessoalmente (rigorosamente calcado nos dados), desconsidero de crédito, uma vez que a personalidade perfeccionista e sóbria de E. não lhe permitiria tamanho descuido com suas cobranças interiores. Acredito, e ressalto a importância deste juízo, que o desvio neste caso tratava-se de mera distração, pois que a mente do curioso homem vivia mergulhada em devaneios obscuros até para si próprio, e neste ponto posso enxergar seu filho fitando-o com curiosidade, tentando desvendar debaixo daquele olhar declinado alguma coisa de palpável, em que pudesse firmar os pés e dar os passos que tanto medo lhe provocavam.2
Sua entrada no mundo do Direito não constituiu surpresa para nenhum de seus familiares, isto é, pelo sentido de ninguém conjeturar qualquer profissão que emoldurasse sua personalidade e suas capacitações. Porém, o fato em si não foi destituído de propriedade singular, pois foi a força do acaso que agiu com suas mãos discretas e por vezes sombria. E. julgava ter assinalado na ficha de inscrição a admissão para o curso de Engenharia Mecânica, mas qual não foi seu espanto ao descobrir que havia sido incluído no quadro discente de Direito! Conhecemos bem estes códigos singulares que regem a vida moderna; o hors concours “x” que devemos marcar em categorias como “sexo”, “estado civil” e outros estigmas valiosos para o bem-estar social, o ancião “1/0” dos códigos binários, os “T40” ou “T52” para designar a profissão pretendida num concurso público ou os algarismos de três ou quatro dígitos para a folha de inscrição numa universidade e para as valiosas senhas bancárias. Apesar de lidar bem com códigos, signos e números, E., pela constante distração característica, deve ter soçobrado alguns dos números. Insisto na idéia de que esta talvez tenha sido a primeira demonstração de que havia algo de revolucionário e contestador em seu espírito, algo latente, esta resistência sociológica contra os padrões institucionais típica dos desajustados. É uma idéia que os homens adeptos da parlapatice tão comuns ao circo fofoqueiro ao redor de E. tratariam como “indecorosa” ou “presunçosa” e “inimaginável”. Julgar-me-iam eles homem de baixas percepções, cavalheiro com “o fino trato das bolas3 prejudicado” ou mesmo “sofredor do mal dos trópicos”. Mas que sabem estes homens? Parasitas! Rodopiavam céleres ao redor de um boato como moscas famintas e se apegavam ao mistério com tanto ardor que seriam bons tipos para uma encenação moderna da lenda de Ícaro – o céu seria a bisbilhotagem da vida dos outros e a queda, ah, esta cairia bem (com o perdão do trocadilho) para as suas infames conclusões precipitadas e pretensiosas a respeito dos fatos concretos que nunca viram.
E. era homem de espírito decididamente libertário e rebelde, disto não há dúvida – há documentos, e estes são os de agora, de minha posse – que revelam as mais judiciosas provas de minha afirmação. Em minhas mãos seguro uma cópia da carta endereçada ao sócio de E., o austero Mr4. Michaelis, da qual o contexto é o desaparecimento de nosso protagonista, se é que posso lhe chamar assim, de nosso mundo limitado. Diz ela, categoricamente:
“Você só enrola! Desde que entrei nesta empresa, trabalho dia e noite para manter em dia todos nossos processos e relatórios! E com os dividendos de nossos lucros (do qual mantenho a irrisória quantia de 25%), o sujeito de mais irregular raciocínio mental inferiria que a parte que me cabe de trabalho neste escritório é muito superior ao que de fato me caberia! Tenho uma família, tenho minhas prioridades, sou amante da vida e não posso viver única e exclusivamente para o trabalho! Prezo pela liberdade, é uma das características latentes mais poderosas do ser humano e prezo igualmente pelo mundo das artes! Sem arte não vivo e tudo isso me é privado pelo simples fato de que a carga de trabalho neste escritório extrapola os níveis mais justos concebidos pela sanidade corporativa. Coisas básicas, como canetas faltando! E o simples ato de conferir os atos processuais marcados, trabalho designado para um estagiário, até estes tenho de me responsabilizar, enquanto você fica aí sentado em cima de sua poltrona recheada de couro, que provavelmente abriga sua bunda gorda de forma satisfatória. Este escritório, sem sombras de dúvida, foi erguido e mantido por minhas mãos, pelo esforço contido em minhas inúmeras horas extras que passei cuidando dos mínimos detalhes para que pudéssemos dar conta dos prazos e das próprias contas! E mais uma vez, o que fazia você neste tempo todo? Evasivas e dissimulações, tomando cafezinho com parceiros de caráter duvidoso...e a maior parte dos lucros, reitero, caindo em suas mãos como uma tempestade de dinheiro. E quando lhe cobro as pequenas coisas, educadamente, para que possamos ter um melhor desempenho e para que eu possa acalmar a demanda crescentemente irritadiça de nossos clientes, você me vem com estas cretinices (não se sabe a que se refere E. neste ponto. [N. do A.])! Estou cheio! Em suma, como já disse, você só enrola!”
(...)
2 Este é um trecho obscuro da narrativa. O autor procede a um juízo que diz respeito ao filho de E., porém não possui ele nenhuma informação que extrapole a personalidade do próprio E. Deixo aqui as palavras da teoria de D.H. Lawrence a respeito do tema, a qual sustenta que “há um envolvimento maior entre o autor e a própria família de E., e que a intenção do mesmo é ocultar esta relação por motivos óbvios.” 2.1
2.1 E quanto ao fato do autor fazer julgamentos claramente pessoais de embasamento nulos a respeito do próprio E.?? E quais seriam os tais motivos óbvios?
3 É preciso que fique claro que à época de escrita deste texto, era bastante comum o uso da expressão “dar trato às bolas”, com a respectiva última palavra referindo-se a cabeça, e não a outro membro tão contemplado por gírias nos dias atuais.
4 Há aqui uma incoerência que pode perturbar olhos mais sensíveis. O fato é que o autor, de índole bastante excêntrica, permitiu a tradução de suas obras do francês apenas se fosse respeitada a condição de se manter o “Mr” de Monsieur, ao invés do óbvio “Sr” do português. Segundo ele, seria uma boa forma de “manter viva, mesmo através de uma pequena chama, a supremacia e a graça do idioma soberbo que é a querida língua dos francos.” É de conhecimento comum o rigor dos franceses com sua língua-mãe. (N. do E).

domingo, abril 06, 2008

TRAPALIUM - (I) - 2.ª parte

Memórias póstumas de um amnésico que ainda vive

Cheguei às memórias de E. de uma forma inesperada e absolutamente casual. Faziam anos que não chegava a estes ouvidos doentes qualquer notícia ou alusão a sua pessoa, de modo que meu posicionamento em relação ao caso todo era de completa indiferença, ou antes, de esquecimento total. A presença absurda da figura de E. havia esvaecido dos complexos andaimes da construção histórica de minhas lembranças; era um caso curioso para confirmar uma velha sabedoria científica, ainda em voga em minha época, a dizer que a mente se ocupa daquilo que lhe é mais imediato. Os homens da ciência, desta feita, e nem mesmo os sábios, poderiam dizer então que estranhos alinhamentos configuraram o rosto do homem em minhas imagens internas naquele dia chuvoso. Existem enigmas na face da humanidade que esperam sentados para serem devorados por uma mente mais precisa, e alguns mesmo com um cérebro bem ocupado de seus mistérios, tendem a se revelar mais resistentes, mais ardorosos ou impenetráveis. A chuva propende a aparecer nestes contextos com um papel ameaçador; tal qual como um caçador silencioso, ela cria em torno de si um vasto silêncio que compreende apenas os ruídos internos de sua existência, como as batidas do coração do caçador ou os estalos dos pingos caindo pelas calhas, janelas e ruas. Existe algo de tenso emanando dum ambiente chuvoso, algo que, se fomentado por circunstâncias extraordinárias em almas sensíveis, pode elevar e direcionar a impressão e disposição destes espíritos para o limite do esgotamento emocional; a espera e a iminência de um perigo próximo tendem a se tornar verdades incontestáveis a estes elementos. Era neste agrupamento de detalhes que se passou aqueles meus momentos sentados à escrivaninha, em que repentinamente o rosto de E. formou-se claro em minha cabeça, e fui assaltado vivamente por sua presença. Com o vívido sentimento de urgência e alerta, intensificado pelos estalos provenientes de minha janela assolada por pingos fortes, fiquei a espera de qualquer coisa de fantástico, que poderia advir a qualquer momento a frente da porta de meu gabinete. E de fato, meus instintos mostraram-se certeiros em suas irracionais conjecturas: algumas angustiantes horas depois, enquanto escrevia uma carta a meu amigo O. sob a luz fraca de uma vela de sete dias, pude distinguir o inconfundível som dos passos coxos do mensageiro de A., que subia as escadas em seu ritmo cadenciado e musical.1 De seu rosto cadavérico, de zigomas salientes e lábios chupados pude extrair apenas um pacote enrolado em barbantes grossos.
Dispensei o pobre homem com algumas moedas e corri ao divã para melhor examinar o conteúdo de meu pacote. Desenrolei os barbantes e percebi um grosso volume com folhas soltas não encadernadas. As folhas estavam amareladas e manchadas por quaisquer substâncias não reconhecíveis. O cheiro que saía deste estranho presente era o de algo similar ao mofo de um depósito costeiro. Logo na contracapa percebi as intenções do livro: “Aqui escrevo minhas memórias, para que fiquem conhecidas de todos aqueles que me foram preciosos durante os anos difíceis de minha ainda não descoberta liberdade”. Assinava embaixo o dono daquele rosto desenhado momentos antes em minha imaginação.
Não havia motivos para aquele pacote estar em minhas mãos. Nunca fui próximo de E. ou nem algo parecido com “aqueles que me foram preciosos”. Na época em que sua pessoa figurava entre os círculos fechados do mundo jurídico, eu mantinha meus interesses focados em assuntos da mais mundana estirpe; não me atraía a companhia de homens excêntricos, em verdade eu evitava sub-repticiamente qualquer aproximação com os assuntos mais polêmicos ou motivos de discussões calorosas, o que não me impedia, porém, de ter conhecimento de todas questões mais controversas. Eu sabia, por exemplo, de vários pormenores da vida do “homem do gavião tatuado na mão”.
Tinha ele família, esposa e dois filhos, gozava de fama longa nos foros e respeitabilidade em seu meio; seus métodos irrepreensíveis causavam temeridade em colegas e inimigos de trabalho, em poucas palavras era um homem de competência indubitável na profissão que escolhera. Eu sabia que um homem com tamanha reputação não poderia ser alvo de desconfianças vãs, mas hoje, olhando sob este ângulo, percebo como conservamos, mesmo após inúmeras desventuras, uma fina camada de inocência sobre nossas carcaças gastas; a jactância é uma característica não tolerada pelos homens e estes inclinam-se à conspiração sutil para mina-la. É importante, antes de mais nada, que a altivez de outrem seja desmistificada, unicamente para que nosso espírito sinta-se em seu exato lugar no mundo. Muitos homens incomodavam-se com a repercussão impactante que E. emanava neste universo imenso das idéias e emoções humanas. Julgavam-no membro de uma máfia ou sociedade secreta, idéia que não desprezei de imediato, mas que também, a partir de, não conjeturei maiores raciocínios. E. gerava a impressão de ser homem rico; andava com estes utensílios que fazem abastado um homem aos olhos dos famintos curiosos, anéis de pedras brilhantes, correntes excêntricas, relógios de um metal reluzente e de interessantes formatos, o carro do ano, valises de couro legítimo, entre outras quinquilharias. Sabia eu entretanto que ele não chefiava ou estava a frente de seu negócio; tinha apenas o título de sócio minoritário do escritório aonde trabalhava, donde seu companheiro era o senhor Michaelis, advogado trabalhista com bom capital e artimanhas gatunas. O escritório tinha contrato de exclusividade com um desses grandes bancos de nossa época, cujos montantes não deixavam nada a desejar a nenhuma companhia particular do ramo. A principal função do estabelecimento, locado num edifício luxuoso mas um tanto decadente no centro de nossa cidade, era a de prestar auxílio de todo caráter jurídico nas transações processuais que corriam ao longo de seus conflitos, principalmente trabalhistas. Seguia-se a lenda, em prol de E., de que este nunca perdera sequer uma causa em favor do banco, o que o colocava embalado como uma “criança prodígio” nos braços da instituição monetária. Tais lendas, a mim, homem de simplória, mas sagaz perspicácia, não afetavam; tinha suficientemente os pés cravados no chão para desvencilhar meus julgamentos de qualquer proeza que sabia impossível a qualquer ser humano: os exageros fazem parte dos devaneios das pessoas comuns, parecem alimentar seus ensejos secretos pela aventura e pelo reforço da negação da possibilidade de um mundo sem heróis; é o eterno desejo de romance, de ilusão, que permeia todos aqueles que puseram a cabeça para fora do ventre materno. De forma que não me mostrava particularmente fascinado por este aspecto da aura que envolvia E. O que de fato fez ele objeto de minha curiosidade e estupefação foi o que ocorreu depois, no final, ato que permaneceu um mistério para todos por anos a fio, até o momento em que, por um golpe misterioso do acaso, suas lembranças caíram-me nas mãos como um pássaro que subitamente pousa em nossos ombros, sem que façamos nada para lhe conquistar a atenção. As memórias, contudo, nada me revelaram sobre os acontecimentos posteriores ao grande final da saga de E. em nossa província. Parece-me que todos eventos ulteriores nada tinham a acrescentar àquela personalidade. Os reais motivos de seu ato conclusivo também permanecem obscuros, o que provavelmente faria destes papéis algo nada atrativo para os esfomeados intelectos dos bisbilhoteiros que bicavam cada migalha de boato nos tempos dos rumores a propósito de E. Devo ressaltar aqui que muita coisa que irá se revelar tampouco desperte interesse na família do homem, pois muitos dos detalhes, como vim mais tarde a descobrir por meios que não compete a esta narrativa abordar, já eram conhecidos dos membros mais próximos de E., fato curioso, pois isso deixa margem para que indagamos com maior seriedade quem seriam “aqueles que me foram preciosos durante os anos difíceis de minha ainda não descoberta liberdade”.
Sem mais retardamentos, proponho-me a narrar o conteúdo do misterioso encarte que tive em mãos. Não me demorarei; os detalhes introdutórios já me serviram para desanuviar os pontos cruciais da história, aqueles que permitirão com que se entendam os alicerces da história de E., as peculiaridades do caso e como ele foi deixado no momento em que o homem desapareceu por completo de nosso cenário. Não obstante, ressalto o fato de que não exporei as memórias conforme estão grafadas no original; tal empreendimento demandaria muito tempo e várias páginas – o que acho desnecessário -, de modo que narrarei resumidamente tudo o que pude apreender. Tal método me sai mais cômodo e, além de tudo, deixa-me em posição de segurança mais ampla no que concerne à narrativa, pois acredito fielmente na isenção de minha capacidade de análise, esta que é, aliás, muito minuciosa. A primeira coisa a se dizer é que E. era realmente pessoa de extraordinária competência. Viveu a infância como um nômade, morando ora numa cidade, ora noutra, em decorrência do emprego de seu pai. Suas notas no colégio não eram nada notáveis; acumulou uma ou outra reprovação e atrasos na periodicidade discente. Não passou no primeiro exame de admissão para a universidade. Nada poderia revelar, neste sentido, sua propensão à eficiência profissional e sua capacidade para abstrair dos infortúnios comuns ao cotidiano uma espécie de metodologia de trabalho bastante apropriada, que dava conta de quaisquer desafios que apareciam, seja em qualquer ramo que escolhesse. A olhos atentos, porém, outras características poderiam dar conta de uma explicação sensata à tal ocorrência. A primeira delas é um relatório anexado ao livro, que demonstra os resultados de uma avaliação feita quando da saída do tenente E. de sua experiência no exército; o formulário apresentava discriminados diversos itens de avaliação, e numa coluna do lado, o espaço para que se pusesse o respectivo resultado, um de quatro possíveis, “excelente”, “ótimo”, “regular” e “ruim”. Os quesitos eram os mais variados possíveis e dividiam-se em quatro categorias distintas. Entre os mais relevantes, destaco “agilidade”, “espírito de cooperação”, “trabalho em equipe”, “iniciativa” etc. Foi surpreendente constatar que, com a exceção de dois quesitos, E. obtivera “excelente” em todo o resto. As exceções também não deixavam nada a desejar: “estabilidade emocional” e “pontualidade” ganharam um “ótimo”. É importante neste ponto que eu deixe registrado que no quesito “caráter”, E., além de ganhar um “excelente”, recebera uma observação especial aclamando sua “extraordinária confiabilidade, senso de dever, ética e postura humana”. Outro fator relevante é sua obsessiva organização pessoal. E. era daquele grupo de homens que, de braços dados com a vaidade, apresentam inopinado senso de responsabilidade por seus hábitos mais singulares e pequenos, como o posicionamento de um porta-retrato em cima de um criado-mudo, ou a ordem detalhada de camisas e ternos dentro do armário pessoal. A obsessão com limpeza também é membro desta família de particularidades, e nosso ilustre homem tinha a casa impecável, começando pelas folhas dobradas em v do papel higiênico no rolo do banheiro, até as insistentes passadas de pano molhado e cera pelo piso de tábua corrida. A posição do porta-retrato de que falei a pouco é bastante modelar: posso ver a cena em que E., enquanto arruma a casa, mexe o objeto um pouco para esquerda, depois torna-o um tanto para a direita, e depois de refeitos umas tantas vezes o processo, parece se contentar com a posição exata visualizada em sua mente configurada no ambiente externo. Estas minúcias não arrolam no inventário dos homens insignificantes, de tal forma que é plausível concluir que E. transportaria seu precioso dom de esforço e perfeccionismo para a fonte de seus ganhos pessoais.
(...)
1 Não consigo entender ainda como os passos de um coxo podem ser musicais. Procurei algumas referências, e até consegui encontrar qualquer paralelo entre os passos insanos de Donald O´Connor em Cantando na Chuva e o sombrio personagem do autor.

quarta-feira, março 26, 2008

TRAPALIUM - (I)

Ano novo, projeto novo. Segue aqui meu primeiro folhetim. Se chego até o fim, só Deus sabe.
I

Papai nos deixou no inverno. Engraçado falar assim, eu sei. Mas é fato, fui acostumado desta forma, sabe-se lá Deus porque, testemunhando assim esta época em que todo mundo fala pai, mãe ou chama pelo nome mesmo. Eu também falo assim, quer dizer, eu digo, com a voz, pra não ficar pra trás, perdido num passado inadequado, parte de um monte de velharias ultrapassadas. Papai e Mamãe é só pela família, ou quando muito, como é este o caso, pra escrever. De um modo ou de outro, portanto, como o bom homem de criação católica que, depois de anos confrontado com sua própria personalidade contestadora, resolve racionalmente a propagar-se um rigoroso ateu em discussões acaloradas mas que, a cada vez que sai à rua não perde o hábito de fazer o sinal da cruz, assim eu conservo o passado bem ligado ao que me define como pessoa.
Papai é, como diriam os mais próximos, contraditório. Deus, penso hoje, que homem não é? Mas isso já são outros quinhentos. Atemo-nos ao assunto. Um belo advogado, profissão de prestígio, exercida com tamanho afinco que não chegou ele a sofrer nenhuma derrota em toda a carreira. Meu amigo Márcio sempre me contesta nesta parte: “Porra, um advogado nunca perde uma causa. Quem perde é o cliente.” Tudo bem, tudo bem. Meu pai sempre conseguiu, na pior das hipóteses, fazer um acordo quando duma causa impossível. Os acordos são uma espécie de deus ex-machina do mundo jurídico, com uma explícita diferença de que o Deus ali é mais ou menos binário: o da defesa e o da acusação. O grande lance é chegar numa resolução por si própria, que surge discretamente, sem menos esperar, mas que no fundo estava sendo meticulosamente planejada por ambos os lados da peleja, as excelentíssimas entidades da peça toda. E no meio disto tudo o cliente, o dramatis personae. É engraçado então o papai assinar no final de cada petição “e com todo o relatado, faço-me uso deste instrumento para que prevaleça a poderosa mão da JUSTIÇA!!!”. Um herói.
Vocês vão me desculpar, mas eu tenho uma tendência a fazer uma imagem romanceada de papai. È um velho hábito e me apego facilmente a este tipo de coisa. Na verdade, sempre achei a realidade um tanto enfadonha. Imagino o mundo como um filme ou uma longa história em que claro, eu sou o protagonista. Até nas pequenas coisas, acreditem. Devo defender a óbvia tese de que este processo torna os fatos mais interessantes? Hoje em dia, quem está ligando para o real, para o palpável? Não é o mundo eterno romance? Abomino com veemência as recentes tendências midiáticas: a época do Big Brother (inútil dizer: muito mais fascinante em George Orwell) já se foi, os programas de auditório com o drama de pessoas normais também nunca teve lá sua audiência. Se isto não convencer qualquer um, parto para um embasamento mais complexo, digno de discussão; não são estes tipos de entretenimento meras conversões de histórias reais em romance? O fato é que sempre existe um diretor e um editor por trás da cena, seja ela a história verdadeira de algum operário oprimido pela pobreza que cria seus oito filhos num barracão ameaçado pela erosão e pelas chuvas ou a duvidosa gama de conflitos entre pessoas confinadas numa casa obrigadas a conviverem juntas por um período mais ou menos longo. Não quero me alongar nisto. Quaisquer reflexões que tendam mais ou menos para uma verve acadêmica me incomodam, e de qualquer forma, não faço disto o objetivo de minha parole. O importante para ficar registrado aqui é: a realidade por si própria é chata demais. Eu, sem receio ou insegurança de, digo que vivo apenas para poder contar uma história depois. Seria demais pedir para ficar sentado enquanto a vida vive sua vida por si só (guardem isto, este comentário é de extrema importância para uma análise pormenorizada de minha personalidade no futuro).
De carona nesta idéia decidi contar a história de papai de outra forma. Não vou só dizer o que aconteceu. Não tem graça. É preciso que haja emoção. Estou disposto a escrever um romance, e ancorado nesta tarefa, não quero de forma alguma deixar algo a dever aos velhos cânones literários. Digo desde já: é preciso respeitar a teoria literária. E a boa teoria literária diz que um bom romance tem emoção e estilo (bem, não nestas exatas palavras, entenda-se). A vida já não tem graça. Pra que repeti-la?
(...)