quinta-feira, janeiro 07, 2016

Série: exercícios formais – texto de 2003, introdução de personagem

Obs.: não há fim, é mero exercício formal... MESMO.

A descarga... a descarga... o que era a descarga?”
‘Leve sussurrar vindo de um fundo obscuro, ditando frases tentadoras, visionárias do desejo mais entranho. Tudo muito quieto, muito quieto, mas logo arfando para um ritmo maior e mais abrangente, indo e voltando e logo só indo, num crescendo sombrio e desconexo, mas tão compreensível para o inconsciente, como se, bons e velhos amigos, pensamento e vontade. O redemoinho se iniciando, misturando-se a tudo o que ali flutua e cai devido a qualquer ação externa, manifestando-se cada vez mais intenso, cada vez mais incontrolável, vitorioso de vida própria, indecente. O ciclo se completando, o serviço completo, fascinante é o processo, é fascinante o ribombar veneroso das paixões esquecidas, o redemoinho crescendo, aumentando, princípio da deblateração pegajosa, a tudo castigar, a tudo flagelar sem julgar, porque não há escapatória, veio à tona, não tem culpa se foi acionada, porque justamente e unicamente foi e agora que venha as consequências e as consequências são essas, que se dane, a não ser que todo o mecanismo esteja com defeito, aí é um deus nos acuda e que tudo vá pra puta que o pariu e se foda, pois no mais tudo é e jamais se para, o vortex fustigante é o que é e que se aguente agora o que ele acomete. Girando e girando, no mesmo lugar e em todos ao mesmo tempo, foi-se e vem, violentando paredes brancas ou amareladas, depende do serviço diário de escoamento, são fluidos e pensamentos, fluidos e pensamentos, voando e aterrizando, dizendo bom-dia e adeus, tristes e inertes, imóveis e insanos, esquecimentos incorpóreos atravessando espelhos para baterem de frente com mais espelhos , refletindo para sempre uma imagem distorcida e irreal de acordo com o gosto da bizarra planície refletora, a imagem distorcida e irreal mas que de certa forma sempre foi e é fiel e mais displicente cruzada da verdade no caminho da dor e do instinto, girando e girando, voltando, violência, dor, rebentação, caindo e subindo, a fúria esvanecendo, perdendo o fôlego, como sempre a calmaria antes da tempestade e a tempestade antes da calmaria, pois sim, o estado supra-histérico não se sustenta com suas próprias bases, não se não vier o dedo no botão novamente acionando o fundo gutural, e assim encerra-se o espetáculo cruel e fabuloso do redemoinho angustiado, caindo, despedaçando-se, indo e voltando lentamente, sumindo, evaporando-se numa onda vertiginosa e sugada pelo buraco escuro e impenetrável de onde veio, para se esconder novamente e aspirar o dia de seu retorno esplendoroso, o caminho da revelação e verdade... rôôôôôuuuuu... shiiiiiii... blon-blon, croc. Minha mente.
            Não posso definir minha mente, na realidade, ninguém pode. Mas também não posso definir por que penso nela quando medito sobre uma descarga ruidosa (eu disse “vaidosa”?) e atraente – a descarga acolhedora de meu nobre lar. Esses tipos de pensamentos, julgo eu, devem vir naturalmente quando se é um vagabundo, quando se é uma pessoa da qual nada brota e floresce, no meu caso, como gosto de definir, um boêmio clandestino, pois meu modo de vida enoja até mesmo a boêmia clássica, nobres poetas e escritores com lastimosos uivos de desespero na noite, lançados à eternidade (ou não).
            No mais, penso que minha atitude nada é mais também do que um grito de desespero, um berro estridente, pegajoso, rastejante, cru e agonizante, com o fôlego do tamanho do mundo. No começo, presumo, devia ser um grito cintilante como o choro de um recém-nascido, mas, à medida em que os anos foram se erguendo, uma angústia e melancolia atravessava a razão e desfigurava uma inocência plástica e que, agora, neste exato momento, descubro eu nada ser mais do que a perda de uma inocência verdadeira e bastante palpável (ou não mais, obviamente). Meu desespero nascia do confronto rebelde com a realidade, realidade esta que, em minha ingenuidade, tentara moldar a meu próprio gosto, e, por esse mesmo motivo, me afundava, cada vez mais num poço obscuro e incongruente. É nesse poço que agora estou, talvez me erguendo glorioso, talvez apodrecendo, só deus sabe. A verdade é que minha personalidade extremista me permitia ter pensamentos do tipo “para conseguir sair do poço é preciso deixar-se ir até o fundo dele”. Mais tarde, descobriria eu que tal ideia não era fruto da referida adjetivação de personalidade, mas, sim, de outra qualidade dessa mesma personalidade, a saber, o experimentalismo, a intensidade e o “emocionalismo”. Sim, sou um entusiasta da alma, mas de sua miséria, podridão e o que mais for, me perdoem o excesso de baboseira.
            Contudo, penso que minhas palavras são obscuras, assumo, e enfadonhas, então me deixem ser mais objetivo.
            Nasci na América do Sul, na capital do meu país (e sempre achei isso tamanhamente relevante, apesar de nunca achar motivo para tal), país que me induziu a acreditar, por meio de um processo inevitável e um tanto evidente de transferência de cultura inata), que seríamos a nação do futuro, uma “nação em desenvolvimento a pleno vapor”, um troço meio revolução industrial mequetrefe, e que só mostrou até então toda sorte de lamentos, sofrimentos, angústias, esculhambação, surrealismos ideológicos e misérias possíveis dentro de um espectro considerável de possibilidades dentro da condição humana. Somos aqui uma amostra razoável de conformismo bovino, a mim um dos ápices da degeneração moral e do caráter humano, embora nenhuma dose de inconformismo tenha modificado consideravelmente porra nenhuma por estes lados, talvez com exceção do fim da Ditadura, ainda que desconfio seriamente de que tenha sido um processo ocorrido somente por forças que recuaram como uma onda, naturalmente, com o mar, e não “pela vontade e soberania do povo”.
Oh, sim, desculpem, desculpem, sou hiperbólico, eu sei, há de se considerar que “shit happens and happens all the time” em todos os lugares do mundo e tal e tal etc. Ahhh, mas, exagerado ou não, não existe nada como o conformismo brasileiro e o selo pré-revelador e universalmente abrangente da ideia de povo brasileiro. Acreditem, como bom antropólogo que sou, creio piamente que uns tratados acadêmicos realmente sérios e dedicados deveriam ser empenhados na tarefa de desvendar e desmembrar historicamente os conceitos e característica inerentes desse conformismo sui generis, pois trata-se de algo como um Quasímodo cultural: repelente e ao mesmo tempo atraente. E o tal selo, “povo feliz”, “povo sofrido, mas festeiro”. Bah! É inevitável pensar na minha descarga novamente. Enfim.
O fato de ter nascido na capital do Brasil, em verdade, não simboliza porra nenhuma, mesmo porque logo me mudei para o sul do país, onde pude ter uma infância melancólica, porém feliz (e que esses tempos não me voltassem, como eram bons!), uma adolescência conturbada e uma formação não menos duvidosa e questionável. Lembro-me com nostalgia de brincadeiras ativas num parquinho, de corridas intermináveis por túneis claros, de risadas espontâneas, gratuitas, mas verdadeiras. Era um moleque saudável, embora meus amigos infantos, por vezes, me acusassem de “mimado” e “chorão”. Talvez fosse o fato de todos eles serem mais velhos e eu um garoto que recebera um excesso de carinho e amor de que nunca poderei reclamar; cresci sem lutar, e isso é uma dádiva que meus pais puderam me aliviar. Entretanto, as provações que meus companheiros me infligiram foram-me benéficas, de forma a começarem o endurecimento de meu caráter e prepararem minha percepção para as intemperâncias de um mundo vindouro. Tanto que, quando adolescente, já estava um passo à frente deles, sacerdócio do experimentalismo, lançando minha alma de encontro à curiosidade, manejando diferentes realizações perscrutadoras, confrontando a prudência, me jogando numa roleta e me deixando levar sem preocupação por caminhos tortuosos e escuros, em busca de uma nebulosa e indistinta revelação, da loucura, procurando por meios não aconselháveis o ser incipiente que deveria ser acordado dentro de mim. O ser ignóbil, estático, que agora se exterioriza. Foi um longo caminho até a transfiguração da monstruosidade decrépita e decadente de hoje. E eu nem vi e percebi o começo, não tive consciência de tudo o que acontecia ao meu redor, porque não queria ter, e quando dei por mim, já estava envolvido até as entranhas nesse perjúrio, afundando nos entraves que eu mesmo montara, já acabado, destruído, humilhado, embora não me arrependesse de nada, nenhum ato, atitude, sorriso de escárnio, choro, peripécias, pois, talvez a mais nobre das vivências humanas seja a humilhação. E, claro, não se pode ir contra o que se é. E eu sou o espírito inquieto, rebelde, contraditório, inconsequente. Imprudência é um estilo de vida. Talvez não seja meramente um espírito indolente, mas o fato de se entregar a ele, em toda essência e crueza. Existe uma corrente que me prende justamente a esse espírito, violado, violentado, arrastado por toda uma geração que cresce perdida, preguiçosa dentro de si, caga-regras hipócrita. Uma pessoa impulsiva, vivendo emoções intensas, agarradas de modo apaixonado, contando os minutos até o dia irascível em que me porei abaixo num leito jocoso, a lançar preces aos tempos que me precederam (eu disse “pertenceram”?). Caminhei sobre brasas impiedosas, mas meus pés nada sentiam – contudo, as cicatrizes me queimavam vez ou outra, lembrando-me de que ali, em passado não muito distante, houveram brasas. É mais ou menos assim que funciona: não me arrependo de minha triste peregrinação, minha caminhada em que não respeitei nenhuma regra, desdenhei a moral sem sobre ela sobrepujar a minha própria, mesmo porque nunca a tive pessoalmente definida de verdade, experimentei inúmeros desafios à ordem, desvirtuando-a gentilmente (vejam bem) e nunca pensando nas ameaças de perdição e desacato. Não me arrependo, contudo, vezes ao meu redor me cobram, talvez para sempre, uma sensatez, coisa esta que virá algum dia – ou nunca – para justificar toda a balbúrdia e descaso em minha alma pelo que move as instituições e o próprio mundo. Essas vozes me perturbam e me julgam e, sobretudo, me condenam. É o pequeno dilema moroso de minha existência.
Eu sou o herói de minha própria vida. Em meu quarto mental, os pôsteres pregados na parede são de mim mesmo.’


E assim, sentado na privada à noite, chorando, Alexandre Daphilus imaginou-se mentalmente falando a um interlocutor (ou um fã) hipotético, logo após um dia em que, na repartição pública em que trabalhava invariavelmente das 8 às 18, levou uma mijada épica (com direito à lição de moral meritocrática) e perdeu sua namorada para um cara que, julgava, era muito mais viril e bem revolvido do que ele.