sábado, junho 16, 2007

O Condomínio (conto inscrito no concurso de contos UFPR - e que não ganhou porra nenhuma)

Depois de 9 anos e meio exercendo o cargo, a síndica anunciou que estava se retirando, para sua própria surpresa e alívio. O anúncio fora feito primeiro ao filho que se mostrou satisfeito e orgulhoso, apesar de já saber que a decisão viria mais cedo ou mais tarde: ele era um dos grandes influenciadores da empreitada.
Já não haviam condições de agüentar as querelas. A síndica, mulher de índole essencialmente boa, agüentava os piores abusos: moradores que tocavam seu interfone para pedir-lhe que abrisse o portão, carteiros (sempre à hora do almoço) querendo entregar uma encomenda e para isso precisavam de sua assinatura, pois os destinatários não estavam em casa no momento, afora pequenas coisas que sempre se acumulam no dia-a-dia, como encanadores, problemas com o portão da garagem, informações de onde moravam quem ou o que, receber faturas das empresas, acompanhar leitores de relógio de luz, etc... As tarefas cotidianas dentro de casa começaram a se tornar desleixadas. As roupas se amontoavam na área de serviço; o pó formava grossas camadas nos móveis e eletrodomésticos; o carpê encardia-se; a casa pouco a pouco assumia feições de um verdadeiro cortiço. O filho lhe dizia:
- Assim não dá mãe! Eu estou sem roupa pra sair! Você fica aí se matando por este condomínio e eu fico aqui, largado às baratas!
- É uma despesa a menos. Não temos de pagar o condomínio todo mês, e você sabe como a economia é importante na nossa situação.
Ao longo dos anos, talvez pela piora da situação das coisas ou mesmo por seu amadurecimento, o rapaz adotou uma postura mais compreensiva e amável. Ouvia a mãe relatando sobre os casos enfrentados a cada dia e crispava os lábios, com raiva e solidariedade.
A síndica era viúva. O marido se fora, mas ficaram as dívidas; tendo que se virar para criar o filho sozinha, recebia apenas uma parca pensão. Até que o filho chegou com boas novas:
- Mãe! Já chega! Você nunca mais terá de agüentar desaforos de ninguém. Consegui um bom emprego e posso ajudar a sustentar a casa.
A mãe ficara agitada, impaciente e notoriamente feliz com a notícia. Disse que iria preparar tudo, avisar confidencialmente alguns vizinhos que lhe eram mais amáveis, marcar uma reunião e anunciar a decisão.
Os condôminos receberam a notícia secamente. Havia no salão de festas, local da reunião, qualquer sentimento parecido com a mais pura indiferença. Limitaram-se a criticar as opções que a síndica havia feito no relativo aos outros assuntos que estavam em pauta: quanto à reforma da cisterna, a síndica apresentou três orçamentos como manda o regulamento; 1.º Dourados Cia – avaliado em R$ 4.682,00 com limpeza da caixa d`água incluída; 2.º Donatto & Mórbido Ltda, avaliado em R$ 3.945,00 e por fim 3.º Lavatoda, avaliada em R$ 1.999,00. A Sr.ª Pontes criticou as empresas procuradas pela senhora síndica, alegando que todas eram de preços exorbitantes e que tudo indicava haver uma precária capacidade administrativa no condomínio, ao que se seguiu comentários e posterior votação. Ficou decidido procurarem novas empresas, tarefa destinada aos conselheiros. Quanto ao problema do barulho do apartamento 25, os condôminos entraram em acordo em que a síndica estava sendo muito complacente com a situação da Sr.ª Galhardo e resolveram medidas extremas, como abertura de processo judicial, tendo em vista que o mesmo apartamento encontra-se em atraso com as despesas já faz um ano. Todos os reunidos exortaram os argumentos da senhora síndica, pequenos apontamentos que levantavam a situação financeira crítica da Sr.ª Galhardo e algumas perturbações mentais claras, mas que no fundo era uma ótima pessoa. Os condôminos resolveram que existia falta de profissionalismo no discurso da síndica e reiteraram o procedimento de aplicar a multa e entrar com ação judicial. Quanto ao problema da bagunça das crianças no playground que estavam gerando reclamações por parte do apartamento do Sr. Fagundes, a senhora síndica utilizou o artigo IV, parágrafo sexto do regulamento do condomínio para defender o posicionamento dos pais das crianças, reforçando que as mesmas tinham o direito de brincar com bola e skates e fazerem qualquer barulho até as dez horas da noite, mas que tal direito poderia ser posto em votação, uma vez que o assunto havia gerado discrepância. O assunto foi posto em votação e ficou decidido que as crianças poderiam brincar como antes, mas que os pais deveriam lhes incutir a responsabilidade de fazer menos barulho. Quanto a questão do apartamento 46, o proprietário e morador, Sr. Takawara censurou mais uma vez a senhora síndica por esta ter mandado uma circular a todo condomínio expondo que ele decidira não mais pagar o condomínio por causa do não recebimento dos balancetes. O Sr. Takawara argumentou que isto era uma falta de vergonha e escrúpulo por parte da senhora síndica, expondo desta maneira sua pessoa. Levantou também a questão de seu carro estar aparecendo riscado várias vezes e que entraria com um processo judicial contra o condomínio, já que a senhora síndica não se posicionou a respeito ou tomou qualquer medida cabível. Sem mais o que discutir, a senhora síndica deu por encerrada a reunião.
Nas semanas seguintes, havia se tornado outra pessoa. Sorridente, mais bonita e arrumada, fazia as tarefas domésticas pela manhã e a tarde assistia novelas ou lia livros. O apartamento voltou novamente a ter uma ordem impecável e o filho tinha sempre as roupas em ordem. Finalmente começara a ter uma vida: depois das traições e dívidas do marido, após os abusos de tantos e tantos anos sofridos sob a égide da falta de dinheiro, podia enfim retomar o curso de sua vida. Radiante, começou a estudar novamente, saía a noite, empolgou-se com artesanato e até um princípio de sentimento vago começou a se configurar dentro de sua alma eternamente ingênua. A síndica sentia aquele foguinho, uma esperançazinha de arrumar um namorado.
O filho, vendo sua mãe feliz e falante, sentiu-se satisfeito. Porém, logo que a transformação se realizara por completo, ele começou a perceber um desconforto que ia crescendo pouco a pouco.
Certo dia, durante a novela, o interfone tocou. Era a Sr.ª Galhardo.
- Olá! Tudo bem? Como está o artesanato? Ah, muito bem, muito bem...você não poderia abrir o portão pra mim? Eu perdi a minha chave e...oh, muito obrigado!
A síndica resmungou qualquer coisa e voltou ao sofá.
Dias mais tarde, seu interfone começou a tocar com certa freqüência. A Sr.ª Galhardo sempre precisava entrar, o correio nunca encontrava os conselheiros e era indicado a tocar neste apartamento, o leitor de luz também enfrentava o mesmo problema...
Estas inconveniências aborreciam a síndica, mas mesmo assim ela não deixava de satisfazer os pedidos. Pensou ser uma coisa normal, talvez força do hábito ou mesmo uma coincidência banal. Foi com certo embaraço então que se surpreendeu quando a campainha de seu apartamento tocou e, ao abrir a porta, revelou o Sr. Fagundes. Ostentava um certo sorriso misterioso no rosto e ficou ali parado por uns instantes, apenas fitando-a.
- Posso ajudá-lo Otávio?
- Na realidade pode sim...- falou por meio dos dentes, o sorriso estático ainda na cara. – Bem, o portão da garagem enguiçou e como a senhora sabe, sempre pode ser um problema da engrenagem e enfim, eu pensei que a senhora poderia dar uma olhada nela.
- Mas Otávio, eu não sou mais síndica!
- Ora...o que custa? Você sabe mexer naquelas engrenagens melhor do que ninguém! É rapidinho, eu tenho que entrar, a senhora sabe, trabalho muito em casa!
A síndica olhou-o com a boca retorcida por uns segundos, mas logo aquiesceu.
As pequenas interrupções em seu dia-a-dia foram se tornando comuns. Cada vez mais os moradores vinham a sua porta pedir-lhe que arrumasse algo, que entregasse certos recados e diversas outras tarefas. A síndica, no princípio, lembrava-os do abandono do seu cargo, mas ao longo do tempo parou de fazer qualquer objeção, uma vez que os moradores pareciam não ouvir qualquer palavra quando ela mencionava o assunto. Não demorou muito pra que um dia chegasse a sua porta o Sr. Takawara, com a expressão de ódio habitual.
- A senhora tem que dar um jeito! Riscaram meu carro novamente! Não posso compartilhar de tanta ignorância e incompetência! Isto é um absurdo!
A Sr.ª Pontes chegou subindo as escadas.
- Olá, Sr. Takawara...olá! Opa, mas é com a senhora mesmo que eu queria falar..eu estou com um problema e não estou gostando do modo como a senhora está lidando com...
- CHEGA! Olhem aqui! Vocês não entenderam ainda? Eu não sou mais a síndica deste condomínio! Não tenho a obrigação de fazer mais nada por aqui, entendem? Se riscaram a porcaria do seu carro, então vá falar com a administradora! É ela quem cuida das coisas aqui! Ou então falem com os conselheiros! Eu não tenho mais nada a ver com isto! Agora, se me permitem, eu tenho coisas mais produtivas a fazer! Passar bem!
Nenhum incidente ocorreu depois de sua explosão. Algum tempo se passou e nem o interfone tocava mais. Parecia que todos tinham entendido o recado. Prova disso era a forma como se comportavam quando encontravam-na pelo prédio: olhavam meio estupefatos, com os olhos arregalados e diziam um tímido “oi”, como uma obrigação. As coisas entraram nos eixos, pensou a síndica, satisfeita. Não se importava com o aparente afastamento dos vizinhos. Continuou a viver sua vida normalmente até o dia em que um comunicado veio lhe despertar não surpresa, mas uma mórbida curiosidade.
Haveria uma reunião extraordinária em tal dia e tal hora, para “assuntos gerais”. A presença de todos os condôminos era indispensável, pois coisas importantes seriam decididas. Não havia assinatura da administradora.
No dia do evento, a síndica achava-se tranqüila. A curiosidade que o comunicado lhe despertara era forte pra que ela comparecesse, mas não suficiente pra lhe perturbar o espírito. Chegou em casa às seis horas, depois de fazer compras. Achou estranho o fato do filho não estar por ali, a esta hora era praticamente religiosa a presença dele – já havia saído do trabalho. Deu de ombros e começou a arrumar-se para descer ao salão de festas.
Chegando lá, viu todas as luzes apagadas. Ora, o que será que aconteceu? Ninguém venho? Abriu a porta e adentrou pra checar. Logo que deu alguns passos, ouviu a porta fechar atrás de si. Uma vela foi acesa. Até a Sr.ª Galhardo estava lá. Pôde ver então vários rostos, rostos duros e pálidos, tão imóveis como bonecos de cera. Baixou a vista e notou que havia alguma coisa na mão de todos eles. Então, num longo momento, morador por morador, cada um deles, em fila indiana e sem nenhuma pressa, aproximou-se.
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