quarta-feira, outubro 26, 2011

Trapalium - trecho avulso central

Existem situações para as quais nenhum administrador foi treinado. E nenhuma faculdade tem a capacidade para prepará-lo.

Encontrei Marcos no corredor, em uma das inúmeras vezes do dia em que eu saía para fumar. Mostrava-se ele preocupado, com o olhar vago, vazio, emoldurado por sobrancelhas tensas, sustentando o queixo com rígidos polegar e indicador. Apoiava-se com o outro braço na parede e barrava o acesso ao bebedouro.

- Você tá bem, cara?

- Hã, como?

- Ce tá bem, Marcos?

- Ah, cara porra, meu, não sei o que fazer aí, cara...

Ergui o sobrolho.

- Ah, é que...ce sabe aí, cara, o Ronald, a história do cagalhão lá...

Sorri. Ronald havia atacado novamente no almoço, deixara um rastro fétido no único banheiro masculino do setor e a coisa parecia que durava umas boas horas, contrariando as leis da física, da química ou o que quer que fosse natural que possa ser agredido ou transgredido. Obviamente ele não errara o alvo, isso seria tão grotesco e grosseiro quanto descobrir uma bactéria com um par genético inédito na natureza. Mas havia sim restos de sua épica jornada pelo banheiro, crostas duras, coladas aqui e acolá na parte interna do vaso, que, à maneira de uma criança tímida agarrando-se ao vestido da mãe, não saíam do lugar nem com a saturação da força da descarga. O lixo estava em desalinho, transbordando, e parecia que Ronald apreciava uma forma excêntrica de dobrar o papel, fazendo um bolinho com ele e não dobrando-o como se faz para compor, por exemplo, um avião. Seria interessante o que um psicólogo poderia extrair daí. Piadas à parte, curioso era como alguns dos bolinhos, talvez mais extrovertidos, ficavam com a parte usada virada para fora, exibindo manchas irregulares e alguns até com pedaços sólidos minúsculos colados, uma pintura caótica que faria um vanguardista pós-moderno (?) lamber os beiços. Ao lado, uma tira pendia balançando vagarosamente grudada na pia. Outros vários pedaços de papel, de diversos tamanhos, espalhavam-se inertes por toda parte. No entanto, Ronald mantinha sua marca pessoal, seu selo de garantia, o "toque do gênio", aquela característica que permite a um crítico distinguir o trabalho do autor como único, pessoal e intransferível. Pois que o pior componente do quadro continuava sendo o odor incocebível, não humano, que assombrava o lugar. Invisível, permanecia ali apesar dos enormes e diversos esforços para exauri-lo, era o mais forte dos espíritos veladores de tumbas esquecidas. Um abutre chegaria voando para trás no recinto. E era, como deveria ser, a gota d´água para o harmonioso ambiente corporativo.

Enquanto me mostrava todo esse quadro de terror absoluto, Marcos deixava transparecer toda sua desconsolação.

- Porra, cara, e agora a faxineira quase me enrabou com o espanador, venho fazendo o sinal da cruz, xingou a mãe de todo mundo e depois foi falar com a Marília. Ce sabe, a Marília nunca ficou de frente com essas mulheres, não é ela que contrata, lógico e...

...e aí de repente, fiquei imaginando, aparece essa mulher descabelada, com o avental um tanto desalinhado para a direita, o espanador segurado com rigidez à maneira de uma arma, e a Marília levanta o olhar de sua mesa e assiste essa pobre criatura em estado de fúria quase psicótica lhe jogar impropérios sobre cagalhões, papéis manchados de merda, bundas gordas e desrespeitodas, jornada de trabalho de 12 hrs em dias ruins, salários aviltantes, autoestima deficiente, o preço do bombril usado para ajustar a antena da TV, jogadas miraculosas para driblar o funcionário da companhia de luz que vem cortar a energia, os três ônibus lotados que se deve pegar para chegar ao trabalho e coisas do gênero.

- É óbvio que a coisa toda iria estourar na minha bunda.

- Bom, parece que na do Ronald elas estouram sozinhas.

- Ah-ah. Você ri, mas a Marília estava furiosa, falou até em fazer terapia e tal, pediu que eu tomasse alguma medida urgente e tudo. Só esqueceu de dizer o quê. Quer dizer, eu ouvi a palavra "comunicado". Mas porra, ce já parou pra pensar em como fazer isso?

- Eu não, mas tenho certeza que você já gastou um bom tempo.

- Pois é...porra, cara - alisou a nuca, baixou a cabeça - olha, véio, eu vou te dizer, você vai todo dia pra faculdade, estuda, são horas que você se fode tentando decifrar o que aquele professor com discurso embolado e ego límpido tentou dizer naquela aula xarope, incontáveis cervejas que você troca com seus amigos junto com experiências sobre o ramo, e nunca imagina que vai enfrentar uma coisa dessas.

Levantei os ombros. Era realmente uma situação delicada. O grande imbróglio residia no teor do comunicado virtual que Marcos deveria enviar. Evidentemente o comunicado seria passado em todo âmbito do setor, devido à grande sensibilidade corporativa em evitar o confronto direto com o transgressor ou mesmo porque a falta de sessões com um terapeuta não preparou Marília para aplicar uma advertência individual. O fato é que Marcos não conseguia encontrar as "palavras certas". Estava familiarizado com pedidos requerendo que os colaboradores mantivessem a mesa limpa em prol do genial e inventivo 5s ou que os processos agora deveriam impreterivelmente serem marcados no largo quadro branco no centro da sala para que a administração pudesse organizar a pauta e saber em que pé andavam as coisas, mas não para censurar odores anais e orgias intestinais e higiênicas no banheiro. Dizer somente para que "zelassem pela limpeza e organização do W.C." não daria, de forma alguma, conta da situação, pois provavelmente colocaria o problema em termos simplórios, e definitivamente a generalidade da mensagem não causaria impacto para que ela fosse cumprida. Em outras palavras: o problema continuaria acontecendo. Mesmo porque Ronald continuaria defecando e não tendo controle sobre o cheiro de seus dejetos. Mas como colocar a coisa de forma satisfatória? Os termos técnicos, ou mais precisamente os detalhes, não poderiam ser explicitados, por razões óbvias. Nem em termos sutis: toda escolha soaria nada menos do que burlesco ou irreal, ou mesmo uma piada de mau gosto aplicada por alguém sem profissionalismo ou de têmpera essencialmente juvenil. Na condição de homem das letras, solidarizei-me com a situação, mas cansado e prevalecendo a condição de homem puto e fanfarrão, sugeri que ele descrevesse ipsis litteris a monstruosidade do acontecimento. Em verdade, admito que não fazia ideia de como dar solução ao problema. Não que não me importasse: sofrendo as intempéries dos caprichos de minhas entranhas, era frequentemente forçado a correr ao banheiro no turno da tarde, eu mesmo sofrendo ao enfrentar uma odissédica prova de resistência ao fechar a porta e sentar no trono dos justos. E me importava também com Marcos, que é uma boa pessoa.

A hipérbole destas linhas parece exagero (ah-ah!). Não é, e convido meus leitores a darem um voto de confiança.1 Creio que todo ser humano já sentiu um cheiro tão forte e subversivo que as narinas começam a arder (realmente). Esses saberão a amplitude do drama e ainda crerão na humildade de minha narrativa. Já vi uma chamada em um site médico, certa vez, dizendo que alguns tipos de câncer cerebral podem fazer com que o paciente sinta frequentemente um cheiro de queimado, inexistente. Fico imaginando, no caso de nossas linhas anteriores, em que o odor é real e quase palpável, que espécie de vis conexões neurológicas se processam dentro de nós enquanto a mente tenta compreender por que o cheiro de determinados dejetos humanos conseguem fazer arder nossas mucosas superiores. Que substâncias estarão ali presentes para configurar tamanho afronta à sensibilidade de nossos nervos? Nem a amônia presente na urina transtornada de bêbados contumazes consegue tanta agressão aos sentidos. Quer dizer, nunca fui um às da química, mas é difícil compreender aquilo que não vemos (tanto fisicamente quanto psicologicamente - é só ver o caso clássico dos índios que não enxergavam um barco se aproximando porque nunca tinham visto aquela coisa antes) e quando este ente invisível tem a capacidade de atingir com ímpeto ou violência um de nossos sentidos, a coisa fica ainda mais complexa. Aquelas moléculas todas minúsculas subindo pelo ar, adentrando nosso nariz, e - perdoem-me se demonstrarei alguma incoerência básica de anatomia ou fisiologia humana: nunca fui tampouco um às das ciências - quem sabe indo até os pulmões e dali para a corrente sanguínea, digo, aquelas moléculas minúsculas responsáveis pela imcompatibilidade com o ser humano, como o gás carbônico, e aí indo parar, por exemplo, nas artérias do cérebro. Já foi mais ou menos provado que a ingestão de algumas substâncias, que de forma nenhuma imaginávamos ou ainda imaginamos nocivas - como sei lá, sazon, podem provocar ou ajudar o aparecimento de focos tumorosos em determinadas regiões anatômicas. Não creio que seria muita viagem conceber um quadro em que, visto o desconhecimento da origem ou natureza das moléculas presentes ali naquele banheiro, nosso cérebro poderia ser afetado por exposição prolongada. Se bem que a conclusão lógica do raciocínio apontaria para um axioma que, no mínimo semanticamente, soaria absurdo: fezes podem causar câncer. Mas isso tudo são vãs filosofias (??).2

De repente tudo aquilo começou a me deprimir. Não consegui mais me defrontar com a cena à minha frente. Tudo me pareceu triste demais e irreal, como uma encenação barata realizada por um paciente sádico de um hospício qualquer, para quem, por alguma razão obscura e deturpada, deram o poder de criar algo. Olhei para Marcos e ele deve ter entendido que a mesma desconsolação que lhe assolava tomou conta de mim, apesar de por motivos distintos. No final das contas estávamos no mesmo barco, acordando cedo todos os dias, caminhando ou pegando ônibus para chegarmos no mesmo local sempre, enfrentando situações diferentes e iguais ao mesmo tempo, uma rotina para a qual teoricamente nos prepararam por anos a fio, não somente na faculdade, mas na vida inteira. Tudo muito alheio, sem sentido.

- É, cara, sei lá. Boa sorte, meu. Mas eu tenho que ir, cara, vou fumar ainda e se demorar muito vão começar a notar. - foi a única coisa que consegui dizer a ele. Virei as costas e deixei ele lá, às voltas com os seus demônios administrativos. Estamos todos sós, no fim de tudo. E isso, definitivamente, nenhuma faculdade poderia estar apta para nos preparar.


1 Ao começarem a ler este texto já deram, o que é meio óbvio. Mas eu sou óbvio.

2 De terceira categoria mesmo para um boteco.

3 Humanas e de um tipo específico, conjuradas sob contextos ainda desconhecidos, que fique claro.

segunda-feira, outubro 17, 2011

Mais um de Jorge Barbosa

Enquanto meu ócio continua vigente, poema novo de Jorge Barbosa Filho.

assinatura


tento ir em prantos
mas choro de tanto de rir
em cantos escuros
onde sou muitos e tantos.
minha solidão é fiel
ela não me deixa só,
ando por aí contido
como espelhos.

não procuro cheques,
sheiks, ou o X da questão.
procuro um antídoto
algum nome, um som
sem bilhetes suicidas.
ganhei-me pelas frestas
e mesmo sendo assim,
dei uma imensa festa
dentro de mim!

até que enfim,
fiquei lindo a noite toda
para esperar por mim,
mas não fui, não vou, nem vim.
as luas dos meus lábios
incendeiam-me insensato
nesta espera sincera,
esqueço quem sou
e lembro quem flui.

passaria séculos convicto
em ser uma oitava acima
de marte e plutão.
mas meu amor não cabe
na boca de um vulcão.
meu umbigo é um big-bang,
apenas um improviso,
uma fuga de jazz band.

não me levei em conta,
não botei na ponta do lápis.
passei na prova dos nove
mas me falta um pouco de álibi.
escrevo com minha sombra,
sem sombra de dúvidas...
nas minhas ilusões, eu me achoe assino em baixo, em baixo.