domingo, abril 06, 2008

TRAPALIUM - (I) - 2.ª parte

Memórias póstumas de um amnésico que ainda vive

Cheguei às memórias de E. de uma forma inesperada e absolutamente casual. Faziam anos que não chegava a estes ouvidos doentes qualquer notícia ou alusão a sua pessoa, de modo que meu posicionamento em relação ao caso todo era de completa indiferença, ou antes, de esquecimento total. A presença absurda da figura de E. havia esvaecido dos complexos andaimes da construção histórica de minhas lembranças; era um caso curioso para confirmar uma velha sabedoria científica, ainda em voga em minha época, a dizer que a mente se ocupa daquilo que lhe é mais imediato. Os homens da ciência, desta feita, e nem mesmo os sábios, poderiam dizer então que estranhos alinhamentos configuraram o rosto do homem em minhas imagens internas naquele dia chuvoso. Existem enigmas na face da humanidade que esperam sentados para serem devorados por uma mente mais precisa, e alguns mesmo com um cérebro bem ocupado de seus mistérios, tendem a se revelar mais resistentes, mais ardorosos ou impenetráveis. A chuva propende a aparecer nestes contextos com um papel ameaçador; tal qual como um caçador silencioso, ela cria em torno de si um vasto silêncio que compreende apenas os ruídos internos de sua existência, como as batidas do coração do caçador ou os estalos dos pingos caindo pelas calhas, janelas e ruas. Existe algo de tenso emanando dum ambiente chuvoso, algo que, se fomentado por circunstâncias extraordinárias em almas sensíveis, pode elevar e direcionar a impressão e disposição destes espíritos para o limite do esgotamento emocional; a espera e a iminência de um perigo próximo tendem a se tornar verdades incontestáveis a estes elementos. Era neste agrupamento de detalhes que se passou aqueles meus momentos sentados à escrivaninha, em que repentinamente o rosto de E. formou-se claro em minha cabeça, e fui assaltado vivamente por sua presença. Com o vívido sentimento de urgência e alerta, intensificado pelos estalos provenientes de minha janela assolada por pingos fortes, fiquei a espera de qualquer coisa de fantástico, que poderia advir a qualquer momento a frente da porta de meu gabinete. E de fato, meus instintos mostraram-se certeiros em suas irracionais conjecturas: algumas angustiantes horas depois, enquanto escrevia uma carta a meu amigo O. sob a luz fraca de uma vela de sete dias, pude distinguir o inconfundível som dos passos coxos do mensageiro de A., que subia as escadas em seu ritmo cadenciado e musical.1 De seu rosto cadavérico, de zigomas salientes e lábios chupados pude extrair apenas um pacote enrolado em barbantes grossos.
Dispensei o pobre homem com algumas moedas e corri ao divã para melhor examinar o conteúdo de meu pacote. Desenrolei os barbantes e percebi um grosso volume com folhas soltas não encadernadas. As folhas estavam amareladas e manchadas por quaisquer substâncias não reconhecíveis. O cheiro que saía deste estranho presente era o de algo similar ao mofo de um depósito costeiro. Logo na contracapa percebi as intenções do livro: “Aqui escrevo minhas memórias, para que fiquem conhecidas de todos aqueles que me foram preciosos durante os anos difíceis de minha ainda não descoberta liberdade”. Assinava embaixo o dono daquele rosto desenhado momentos antes em minha imaginação.
Não havia motivos para aquele pacote estar em minhas mãos. Nunca fui próximo de E. ou nem algo parecido com “aqueles que me foram preciosos”. Na época em que sua pessoa figurava entre os círculos fechados do mundo jurídico, eu mantinha meus interesses focados em assuntos da mais mundana estirpe; não me atraía a companhia de homens excêntricos, em verdade eu evitava sub-repticiamente qualquer aproximação com os assuntos mais polêmicos ou motivos de discussões calorosas, o que não me impedia, porém, de ter conhecimento de todas questões mais controversas. Eu sabia, por exemplo, de vários pormenores da vida do “homem do gavião tatuado na mão”.
Tinha ele família, esposa e dois filhos, gozava de fama longa nos foros e respeitabilidade em seu meio; seus métodos irrepreensíveis causavam temeridade em colegas e inimigos de trabalho, em poucas palavras era um homem de competência indubitável na profissão que escolhera. Eu sabia que um homem com tamanha reputação não poderia ser alvo de desconfianças vãs, mas hoje, olhando sob este ângulo, percebo como conservamos, mesmo após inúmeras desventuras, uma fina camada de inocência sobre nossas carcaças gastas; a jactância é uma característica não tolerada pelos homens e estes inclinam-se à conspiração sutil para mina-la. É importante, antes de mais nada, que a altivez de outrem seja desmistificada, unicamente para que nosso espírito sinta-se em seu exato lugar no mundo. Muitos homens incomodavam-se com a repercussão impactante que E. emanava neste universo imenso das idéias e emoções humanas. Julgavam-no membro de uma máfia ou sociedade secreta, idéia que não desprezei de imediato, mas que também, a partir de, não conjeturei maiores raciocínios. E. gerava a impressão de ser homem rico; andava com estes utensílios que fazem abastado um homem aos olhos dos famintos curiosos, anéis de pedras brilhantes, correntes excêntricas, relógios de um metal reluzente e de interessantes formatos, o carro do ano, valises de couro legítimo, entre outras quinquilharias. Sabia eu entretanto que ele não chefiava ou estava a frente de seu negócio; tinha apenas o título de sócio minoritário do escritório aonde trabalhava, donde seu companheiro era o senhor Michaelis, advogado trabalhista com bom capital e artimanhas gatunas. O escritório tinha contrato de exclusividade com um desses grandes bancos de nossa época, cujos montantes não deixavam nada a desejar a nenhuma companhia particular do ramo. A principal função do estabelecimento, locado num edifício luxuoso mas um tanto decadente no centro de nossa cidade, era a de prestar auxílio de todo caráter jurídico nas transações processuais que corriam ao longo de seus conflitos, principalmente trabalhistas. Seguia-se a lenda, em prol de E., de que este nunca perdera sequer uma causa em favor do banco, o que o colocava embalado como uma “criança prodígio” nos braços da instituição monetária. Tais lendas, a mim, homem de simplória, mas sagaz perspicácia, não afetavam; tinha suficientemente os pés cravados no chão para desvencilhar meus julgamentos de qualquer proeza que sabia impossível a qualquer ser humano: os exageros fazem parte dos devaneios das pessoas comuns, parecem alimentar seus ensejos secretos pela aventura e pelo reforço da negação da possibilidade de um mundo sem heróis; é o eterno desejo de romance, de ilusão, que permeia todos aqueles que puseram a cabeça para fora do ventre materno. De forma que não me mostrava particularmente fascinado por este aspecto da aura que envolvia E. O que de fato fez ele objeto de minha curiosidade e estupefação foi o que ocorreu depois, no final, ato que permaneceu um mistério para todos por anos a fio, até o momento em que, por um golpe misterioso do acaso, suas lembranças caíram-me nas mãos como um pássaro que subitamente pousa em nossos ombros, sem que façamos nada para lhe conquistar a atenção. As memórias, contudo, nada me revelaram sobre os acontecimentos posteriores ao grande final da saga de E. em nossa província. Parece-me que todos eventos ulteriores nada tinham a acrescentar àquela personalidade. Os reais motivos de seu ato conclusivo também permanecem obscuros, o que provavelmente faria destes papéis algo nada atrativo para os esfomeados intelectos dos bisbilhoteiros que bicavam cada migalha de boato nos tempos dos rumores a propósito de E. Devo ressaltar aqui que muita coisa que irá se revelar tampouco desperte interesse na família do homem, pois muitos dos detalhes, como vim mais tarde a descobrir por meios que não compete a esta narrativa abordar, já eram conhecidos dos membros mais próximos de E., fato curioso, pois isso deixa margem para que indagamos com maior seriedade quem seriam “aqueles que me foram preciosos durante os anos difíceis de minha ainda não descoberta liberdade”.
Sem mais retardamentos, proponho-me a narrar o conteúdo do misterioso encarte que tive em mãos. Não me demorarei; os detalhes introdutórios já me serviram para desanuviar os pontos cruciais da história, aqueles que permitirão com que se entendam os alicerces da história de E., as peculiaridades do caso e como ele foi deixado no momento em que o homem desapareceu por completo de nosso cenário. Não obstante, ressalto o fato de que não exporei as memórias conforme estão grafadas no original; tal empreendimento demandaria muito tempo e várias páginas – o que acho desnecessário -, de modo que narrarei resumidamente tudo o que pude apreender. Tal método me sai mais cômodo e, além de tudo, deixa-me em posição de segurança mais ampla no que concerne à narrativa, pois acredito fielmente na isenção de minha capacidade de análise, esta que é, aliás, muito minuciosa. A primeira coisa a se dizer é que E. era realmente pessoa de extraordinária competência. Viveu a infância como um nômade, morando ora numa cidade, ora noutra, em decorrência do emprego de seu pai. Suas notas no colégio não eram nada notáveis; acumulou uma ou outra reprovação e atrasos na periodicidade discente. Não passou no primeiro exame de admissão para a universidade. Nada poderia revelar, neste sentido, sua propensão à eficiência profissional e sua capacidade para abstrair dos infortúnios comuns ao cotidiano uma espécie de metodologia de trabalho bastante apropriada, que dava conta de quaisquer desafios que apareciam, seja em qualquer ramo que escolhesse. A olhos atentos, porém, outras características poderiam dar conta de uma explicação sensata à tal ocorrência. A primeira delas é um relatório anexado ao livro, que demonstra os resultados de uma avaliação feita quando da saída do tenente E. de sua experiência no exército; o formulário apresentava discriminados diversos itens de avaliação, e numa coluna do lado, o espaço para que se pusesse o respectivo resultado, um de quatro possíveis, “excelente”, “ótimo”, “regular” e “ruim”. Os quesitos eram os mais variados possíveis e dividiam-se em quatro categorias distintas. Entre os mais relevantes, destaco “agilidade”, “espírito de cooperação”, “trabalho em equipe”, “iniciativa” etc. Foi surpreendente constatar que, com a exceção de dois quesitos, E. obtivera “excelente” em todo o resto. As exceções também não deixavam nada a desejar: “estabilidade emocional” e “pontualidade” ganharam um “ótimo”. É importante neste ponto que eu deixe registrado que no quesito “caráter”, E., além de ganhar um “excelente”, recebera uma observação especial aclamando sua “extraordinária confiabilidade, senso de dever, ética e postura humana”. Outro fator relevante é sua obsessiva organização pessoal. E. era daquele grupo de homens que, de braços dados com a vaidade, apresentam inopinado senso de responsabilidade por seus hábitos mais singulares e pequenos, como o posicionamento de um porta-retrato em cima de um criado-mudo, ou a ordem detalhada de camisas e ternos dentro do armário pessoal. A obsessão com limpeza também é membro desta família de particularidades, e nosso ilustre homem tinha a casa impecável, começando pelas folhas dobradas em v do papel higiênico no rolo do banheiro, até as insistentes passadas de pano molhado e cera pelo piso de tábua corrida. A posição do porta-retrato de que falei a pouco é bastante modelar: posso ver a cena em que E., enquanto arruma a casa, mexe o objeto um pouco para esquerda, depois torna-o um tanto para a direita, e depois de refeitos umas tantas vezes o processo, parece se contentar com a posição exata visualizada em sua mente configurada no ambiente externo. Estas minúcias não arrolam no inventário dos homens insignificantes, de tal forma que é plausível concluir que E. transportaria seu precioso dom de esforço e perfeccionismo para a fonte de seus ganhos pessoais.
(...)
1 Não consigo entender ainda como os passos de um coxo podem ser musicais. Procurei algumas referências, e até consegui encontrar qualquer paralelo entre os passos insanos de Donald O´Connor em Cantando na Chuva e o sombrio personagem do autor.

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