quarta-feira, março 26, 2008

TRAPALIUM - (I)

Ano novo, projeto novo. Segue aqui meu primeiro folhetim. Se chego até o fim, só Deus sabe.
I

Papai nos deixou no inverno. Engraçado falar assim, eu sei. Mas é fato, fui acostumado desta forma, sabe-se lá Deus porque, testemunhando assim esta época em que todo mundo fala pai, mãe ou chama pelo nome mesmo. Eu também falo assim, quer dizer, eu digo, com a voz, pra não ficar pra trás, perdido num passado inadequado, parte de um monte de velharias ultrapassadas. Papai e Mamãe é só pela família, ou quando muito, como é este o caso, pra escrever. De um modo ou de outro, portanto, como o bom homem de criação católica que, depois de anos confrontado com sua própria personalidade contestadora, resolve racionalmente a propagar-se um rigoroso ateu em discussões acaloradas mas que, a cada vez que sai à rua não perde o hábito de fazer o sinal da cruz, assim eu conservo o passado bem ligado ao que me define como pessoa.
Papai é, como diriam os mais próximos, contraditório. Deus, penso hoje, que homem não é? Mas isso já são outros quinhentos. Atemo-nos ao assunto. Um belo advogado, profissão de prestígio, exercida com tamanho afinco que não chegou ele a sofrer nenhuma derrota em toda a carreira. Meu amigo Márcio sempre me contesta nesta parte: “Porra, um advogado nunca perde uma causa. Quem perde é o cliente.” Tudo bem, tudo bem. Meu pai sempre conseguiu, na pior das hipóteses, fazer um acordo quando duma causa impossível. Os acordos são uma espécie de deus ex-machina do mundo jurídico, com uma explícita diferença de que o Deus ali é mais ou menos binário: o da defesa e o da acusação. O grande lance é chegar numa resolução por si própria, que surge discretamente, sem menos esperar, mas que no fundo estava sendo meticulosamente planejada por ambos os lados da peleja, as excelentíssimas entidades da peça toda. E no meio disto tudo o cliente, o dramatis personae. É engraçado então o papai assinar no final de cada petição “e com todo o relatado, faço-me uso deste instrumento para que prevaleça a poderosa mão da JUSTIÇA!!!”. Um herói.
Vocês vão me desculpar, mas eu tenho uma tendência a fazer uma imagem romanceada de papai. È um velho hábito e me apego facilmente a este tipo de coisa. Na verdade, sempre achei a realidade um tanto enfadonha. Imagino o mundo como um filme ou uma longa história em que claro, eu sou o protagonista. Até nas pequenas coisas, acreditem. Devo defender a óbvia tese de que este processo torna os fatos mais interessantes? Hoje em dia, quem está ligando para o real, para o palpável? Não é o mundo eterno romance? Abomino com veemência as recentes tendências midiáticas: a época do Big Brother (inútil dizer: muito mais fascinante em George Orwell) já se foi, os programas de auditório com o drama de pessoas normais também nunca teve lá sua audiência. Se isto não convencer qualquer um, parto para um embasamento mais complexo, digno de discussão; não são estes tipos de entretenimento meras conversões de histórias reais em romance? O fato é que sempre existe um diretor e um editor por trás da cena, seja ela a história verdadeira de algum operário oprimido pela pobreza que cria seus oito filhos num barracão ameaçado pela erosão e pelas chuvas ou a duvidosa gama de conflitos entre pessoas confinadas numa casa obrigadas a conviverem juntas por um período mais ou menos longo. Não quero me alongar nisto. Quaisquer reflexões que tendam mais ou menos para uma verve acadêmica me incomodam, e de qualquer forma, não faço disto o objetivo de minha parole. O importante para ficar registrado aqui é: a realidade por si própria é chata demais. Eu, sem receio ou insegurança de, digo que vivo apenas para poder contar uma história depois. Seria demais pedir para ficar sentado enquanto a vida vive sua vida por si só (guardem isto, este comentário é de extrema importância para uma análise pormenorizada de minha personalidade no futuro).
De carona nesta idéia decidi contar a história de papai de outra forma. Não vou só dizer o que aconteceu. Não tem graça. É preciso que haja emoção. Estou disposto a escrever um romance, e ancorado nesta tarefa, não quero de forma alguma deixar algo a dever aos velhos cânones literários. Digo desde já: é preciso respeitar a teoria literária. E a boa teoria literária diz que um bom romance tem emoção e estilo (bem, não nestas exatas palavras, entenda-se). A vida já não tem graça. Pra que repeti-la?
(...)

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