domingo, janeiro 21, 2007

Samba do Fuxiqueiro

(Fman - M.L. Fumaneri)

Você me condena por falar da vida alheia
diz que é pecado que é coisa muito feia
mas não vê que na vida o perigo,
o tédio, é olhar o próprio umbigo

nada é mais humano
que a picuinha minha com a picuinha tua
olhando a vizinha errando pela rua

e quando nos erros meus
a vizinhança me crucificar
vai ser bonito de ver
a cara da vizinha
quando me deixares voltar

você me condena por falar da vida alheia
diz que é pecado que é coisa muito feia
mas que graça tem a realidade
se ninguém comenta nossa intimidade

não é por vaidade
não somos melhores que ninguém
é que minha felicidade
é abrilhantar o fracasso de alguém

cada macaco no seu galho é muito solitário
mas no dia de carnaval eu deixo de lado
não vou rir da desgraça de outrem
que é pra eu e a vizinha ficarmos de bem

terça-feira, janeiro 16, 2007

Conto:

Despejo
para Maria


Despejo as cartas na mesa e espero afoita, de certa forma desatenta a tudo o mais em volta, como uma bela confusão; são ás de paus, dama de copas, reis e valetes, todos poderosos e imponentes em seus trajes majestosos, ditando meu futuro incerto que não me interesso verdadeiramente em transcrever. Despejo as pílulas do tubo ali em cima, e aí fica um mosaico estranho e colorido, as cores são bonitas a mim – sou design gráfica, ou era, como algum pedaço de papel quis imprimir em minha personalidade a algum tempo atrás, fruto de algum esforço despendido com certa alegria durante alguns anos sentada com a caneta pendurada nos lábios e os olhos atentos àquela nuca vincada que logo a frente parecia rude e ao mesmo tempo lírica aos meus sentidos estéticos mais apurados. Escrevo então nomes com as pílulas, juntando a extremidade de uma com a extremidade de outra, uma tarefa divertida que faz o tempo correr enquanto dentro de mim não corre mais nada, talvez apenas um sangue quente e endurecido.
Escrevo com pílulas os primeiros anos alegres sob a tutela de sonhos ideológicos e românticos, em que a aproximação de um beijo me faria sentir um pavor histérico de moça recatada, como se os lábios alheios violassem uma lei impenetrável, cujo castigo seria imponentemente a pena de morte. Não, estes lábios curvados em reverência são mais do que duas mucosas apertadas, são dois grilhões do universo, são uma sentença não julgada, um apertar e afrouxar do coração que bombeia freneticamente. Meus lábios fazem reverência quando abertos, mas os juízes são severos: meus lábios procuram o pecado, mas vivem em santidade plena, inviolável.
A penteadeira ao meu lado com seu espelho mágico some. Despejo então meus pentes sobre as cartas, sobre pílulas e lembro ternamente que um dia na praia eu havia pensado que nenhum pente no mundo arrumaria meus cabelos bagunçados por aquele vento infernal enquanto no processo de desmoronamento do mundo eu esquecia espantosamente aquela nuca vincada – mas não os olhos tristes, contudo os olhos tristes deixariam de me percorrer o corpo como um mistério em que eu fosse a maior e mais destemida dos detetives de almas; não, antes aqueles olhos apenas me transmitiam uma melancolia que não me pertencia mais – e olhava o sol e o mar rebentarem nos meus olhos e ouvidos com toda a força que poderia imaginar existir dentro de mim.
É um sorriso que está dentro agora, o armário desaparece sem deixar vestígios a não ser pegadas sujas de lama no assoalho. As roupas já não me servem, deixaram de me servir há muito tempo atrás, quando um pedaço de pano sobre o corpo era uma prisão atordoante, quando tudo o mais que eu queria sentir era a coroação suprema de um amor que eu enxergava como a mais implacável de todas as prisões. As roupas, então, eram a prisão dentro da prisão e Ricardo me deixava dentro de ambas, este Ricardo severo, maluco, que fitava o vazio enquanto eu via em seu olhar que não tinha nada de triste mas sim de pavoroso, o pavor que todos meus sentidos queriam acolher. Ricardo venho a mim como o despejo de um outro amor que deixei balançar ao vento na praia. Mas Ricardo ao mesmo tempo me privava de meu maior sentido, o sentido de estabelecer um limite para o amor que eu via crescer dentro de mim sendo uma bomba com tempo limitado: tudo iria explodir à minha volta, mas eu não queria a explosão fora de mim, ah, não, esta explosão só poderia vir de dentro e justamente aí ele me aprisionava, recusava-se inexplicavelmente a tornar em pecado mais do que meus lábios, mas todo meu ser, embora o pecado em que eu estivesse a procurar fosse na verdade aquela coroação suprema da maior santidade que havia em meus sonhos, seria o pecado que me levaria à libertação integral de tudo que me possuía. É de se compreender, quando olho por um momento em volta, antes que o armário se vá definitivamente, que eu mude de idéia – ainda sem prestar atenção a tudo em volta – e pegue todas as roupas da gaveta e as despeje sobre meus mosaicos tão valiosos agora aos olhos como ao sentidos.
Ricardo não veria nos meus sentidos nada mais que alguma arma que eu lhe atirasse furiosamente; eu via em seus rompantes oriundos da mesma origem que a minha, apenas flechas que não eram propriamente armas, mas sim alimento para minha paixão. Existia assim uma necessidade de eu me ver completa, de sentir que meu sentir lhe era repelido com tanto enigma e contradição que me deixava ás beiras da loucura, mas a esta loucura, me vinha de encontro as respostas que sempre buscava, um ciclo hediondo em que cada vez mais eu descobria fundo de mim a mulher furiosa e descontrolada se perdendo em algo que pouco a pouco ia se privando de todas as justificativas possíveis de se acatar. O algo que eu já não sabia mais o que era, apenas mergulhava dentro de, buscando vez ou outra a superfície para ter um pouco que seja de ar dentro dos pulmões. Inevitavelmente, um dia, eu iria mergulhar tão fundo encantada com a luz do sol refletida nos corais lá embaixo, que iria afundar de vez na escuridão do mar, sem conseguir ter forças para chegar lá em cima para respirar novamente. Ricardo sabia disso. Sabia mais do que ninguém. E um dia ele chega a meus ouvidos e a meus olhos inchados e diz: “eu tentei...eu tentei te amar.”
É a vez do criado-mudo. Tudo que tentei amar poderia estar dentro dum criado-mudo, um belo dum criado mudo alto e assustador, vestido com roupas de um mordomo, que visse terríveis segredos se desenrolarem dentro da casa de seu patrão, mas nada poderia dizer porque sua impossibilidade estava destinada a ser seu fardo. Muitos me amaram. A estes, eu tentei amar. Tentei amar novamente sempre como o despejo de um novo amor. Sendo assim, pego as cartas embrulhadas e as despejo sobre a mesa, e agora o quadro que me aparece não é algo bonito tampouco provido de ordem, e sim um amontoado de coisas e mais coisas que me deixam de enxergar qualquer objeto real no meio daquilo tudo. Existem cartas de amor, cartas de amigo e enquanto passeio as mãos – e olhos rapidamente – sinto um fugaz arrepio no meu estômago e descubro mais uma vez que existe por trás de todas estas trilhas percorridas o algo maior que me preenche e se torna o objetivo maior de minha vida. Por ela, eu despejaria o tudo o mais. Mais uma vez, enxergo então por baixo daquela confusão de objetos, as pílulas. Vejo Ricardo dentro delas. Vejo a destruição de sua ausência. Vejo, entretanto, a morte que ele fez justamente neste objetivo maior que me faz inteira por dentro. Eu sequei, fiz-me podre e infértil, um saco vazio sem qualquer sustentação. Não me senti mulher por todo este tempo, sequer fui mulher durante todos estes anos. Não queria nada mais que os segredos do pecado estampados num lençol, coroando, como já disse, os limites da paixão que me faz flutuar na santidade.
Está quase tudo vazio. A penúltima delas, é tomada de assalto e se vai com certa dificuldade. Eu sei. A cama pesa duas toneladas. Não seria fácil a ela sumir assim tão rapidamente. Nela foi finalmente feita a vontade do profano, e mil anjos tocaram trombetas em cima. Uma chuva fina caiu sobre nossas cabeças e pudemos nos sentir purificados de todos nossos desencontros. Despejo o lençol sobre a mesa e cubro todos os objetos que estavam nela. Amarro tudo e coloco sobre meus ombros. Em pé, posso então sorrir com o peso da cama sumindo.
Ele me veio despejado por suas próprias angústias, por um mundo que não lhe supriu de forma alguma o seu grande saco vazio – a semelhança do meu – e lhe deixou tão destruído e corrompido quanto um santo poderia ficar. Ele, por sua vez, os seus lábios, procuravam a santidade, mas viviam no eterno pecado. A ele, a busca era a santidade no inferno. Quando ele veio a mim, foi despejado então como Lúcifer o fora do paraíso. Mas ele veio tão casado com minhas próprias religiosidades do corpo, que o fruto de toda esta destruição que nos atingia só poderia gerar um casamento perfeito entre os justos e os ímpios, e desta forma se rompeu sobre minha cama a explosão de um encontro que salvou tanto minha alma do pecado, quanto a dele, da santidade. Nada mais que um duelo de titãs. Nada mais poderia pesar tanto sobre uma cama como esta união perfeita de tanta destruição gerada pela criação. Suspiro aliviada: a cama já se foi.
É chegada a hora, penso. Existe tranqüilidade. Ela está presente em mim há algum tempo. Não é tranqüilidade dos monges, mas antes uma serenidade que me permite estar de acordo com aquilo que me move e me faz ser tanto eu quanto poderia. Não acho nada estranho esta serenidade advir de uma micro mutilação dentro do meu corpo. Esta serenidade me deixa inquieta todos os dias, e assim posso me sentir viva, pois sinto que aquilo que esteve sempre comigo como uma ordem do que deveria fazer de minha vida algo valioso, isto está vivo e arde com força. Eu amo. O Amor, desta vez, não foi um despejo meu, mas venho até mim assim. Um ciclo que agora se mostra com todo sentido. Ele criou o sentido. A mesa, finalmente, levanta-se e vai indo embora rapidamente. Antes que ela suma, pego de cima dela a ordem de despejo, coloco o lençol com os pertences dentro de uma mala, fecho-a e me encaminho para a porta da frente.
Lá fora, está esperando aqueles olhos tristes com sua nuca vincada. Lhe dou as mãos e caminhamos na direção do final da rua, onde o sol se põe belamente. Lhe olho de solaio e vejo seus olhos, mas seus olhos não são mais tristes: o mistério que antes eu insistia em procurar, já estava desvendado.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Conceição (1.ª versão)

à maria

um poema na lagoa como uma moeda
no poço por onde escoa o limo
no fosso, a lágrima do menino.
um poema na lagoa roga a todos
os santos bem a jeito de garoto e sua pedra no fundo
do poço a lagoa, entretanto, em seu encanto
não é recanto de todos os santos;
a eles canta a baía, acima, um estrondoso
dum canto.

a água no sul, é de Conceição
uma só dona, uma só canção.
Lagoa da Conceição,
o poema em chama desaba
cai sob sol, sob música, sobre lava,
mas não esconde no poço
o desejo de uma lágrima atirada.