segunda-feira, abril 14, 2008

Trapalium - (I) - 3.ª parte

Outrossim, sua regular carreira acadêmica não provocou a atenção de qualquer pessoa, incluindo seus próprios genitores, de maneira a lhe prejudicar ou fomentar questionamentos a respeito do alcance de suas faculdades mentais. Era esforçado num certo sentido, e isto bastava para qualquer um; o brilhantismo de seu comportamento acobertava qualquer possível falha nos ramos periféricos de sua vida. No máximo era possível dizer que o excesso de suas qualidades lhe permitia uma espécie de desleixo para com os estudos, asserção que pessoalmente (rigorosamente calcado nos dados), desconsidero de crédito, uma vez que a personalidade perfeccionista e sóbria de E. não lhe permitiria tamanho descuido com suas cobranças interiores. Acredito, e ressalto a importância deste juízo, que o desvio neste caso tratava-se de mera distração, pois que a mente do curioso homem vivia mergulhada em devaneios obscuros até para si próprio, e neste ponto posso enxergar seu filho fitando-o com curiosidade, tentando desvendar debaixo daquele olhar declinado alguma coisa de palpável, em que pudesse firmar os pés e dar os passos que tanto medo lhe provocavam.2
Sua entrada no mundo do Direito não constituiu surpresa para nenhum de seus familiares, isto é, pelo sentido de ninguém conjeturar qualquer profissão que emoldurasse sua personalidade e suas capacitações. Porém, o fato em si não foi destituído de propriedade singular, pois foi a força do acaso que agiu com suas mãos discretas e por vezes sombria. E. julgava ter assinalado na ficha de inscrição a admissão para o curso de Engenharia Mecânica, mas qual não foi seu espanto ao descobrir que havia sido incluído no quadro discente de Direito! Conhecemos bem estes códigos singulares que regem a vida moderna; o hors concours “x” que devemos marcar em categorias como “sexo”, “estado civil” e outros estigmas valiosos para o bem-estar social, o ancião “1/0” dos códigos binários, os “T40” ou “T52” para designar a profissão pretendida num concurso público ou os algarismos de três ou quatro dígitos para a folha de inscrição numa universidade e para as valiosas senhas bancárias. Apesar de lidar bem com códigos, signos e números, E., pela constante distração característica, deve ter soçobrado alguns dos números. Insisto na idéia de que esta talvez tenha sido a primeira demonstração de que havia algo de revolucionário e contestador em seu espírito, algo latente, esta resistência sociológica contra os padrões institucionais típica dos desajustados. É uma idéia que os homens adeptos da parlapatice tão comuns ao circo fofoqueiro ao redor de E. tratariam como “indecorosa” ou “presunçosa” e “inimaginável”. Julgar-me-iam eles homem de baixas percepções, cavalheiro com “o fino trato das bolas3 prejudicado” ou mesmo “sofredor do mal dos trópicos”. Mas que sabem estes homens? Parasitas! Rodopiavam céleres ao redor de um boato como moscas famintas e se apegavam ao mistério com tanto ardor que seriam bons tipos para uma encenação moderna da lenda de Ícaro – o céu seria a bisbilhotagem da vida dos outros e a queda, ah, esta cairia bem (com o perdão do trocadilho) para as suas infames conclusões precipitadas e pretensiosas a respeito dos fatos concretos que nunca viram.
E. era homem de espírito decididamente libertário e rebelde, disto não há dúvida – há documentos, e estes são os de agora, de minha posse – que revelam as mais judiciosas provas de minha afirmação. Em minhas mãos seguro uma cópia da carta endereçada ao sócio de E., o austero Mr4. Michaelis, da qual o contexto é o desaparecimento de nosso protagonista, se é que posso lhe chamar assim, de nosso mundo limitado. Diz ela, categoricamente:
“Você só enrola! Desde que entrei nesta empresa, trabalho dia e noite para manter em dia todos nossos processos e relatórios! E com os dividendos de nossos lucros (do qual mantenho a irrisória quantia de 25%), o sujeito de mais irregular raciocínio mental inferiria que a parte que me cabe de trabalho neste escritório é muito superior ao que de fato me caberia! Tenho uma família, tenho minhas prioridades, sou amante da vida e não posso viver única e exclusivamente para o trabalho! Prezo pela liberdade, é uma das características latentes mais poderosas do ser humano e prezo igualmente pelo mundo das artes! Sem arte não vivo e tudo isso me é privado pelo simples fato de que a carga de trabalho neste escritório extrapola os níveis mais justos concebidos pela sanidade corporativa. Coisas básicas, como canetas faltando! E o simples ato de conferir os atos processuais marcados, trabalho designado para um estagiário, até estes tenho de me responsabilizar, enquanto você fica aí sentado em cima de sua poltrona recheada de couro, que provavelmente abriga sua bunda gorda de forma satisfatória. Este escritório, sem sombras de dúvida, foi erguido e mantido por minhas mãos, pelo esforço contido em minhas inúmeras horas extras que passei cuidando dos mínimos detalhes para que pudéssemos dar conta dos prazos e das próprias contas! E mais uma vez, o que fazia você neste tempo todo? Evasivas e dissimulações, tomando cafezinho com parceiros de caráter duvidoso...e a maior parte dos lucros, reitero, caindo em suas mãos como uma tempestade de dinheiro. E quando lhe cobro as pequenas coisas, educadamente, para que possamos ter um melhor desempenho e para que eu possa acalmar a demanda crescentemente irritadiça de nossos clientes, você me vem com estas cretinices (não se sabe a que se refere E. neste ponto. [N. do A.])! Estou cheio! Em suma, como já disse, você só enrola!”
(...)
2 Este é um trecho obscuro da narrativa. O autor procede a um juízo que diz respeito ao filho de E., porém não possui ele nenhuma informação que extrapole a personalidade do próprio E. Deixo aqui as palavras da teoria de D.H. Lawrence a respeito do tema, a qual sustenta que “há um envolvimento maior entre o autor e a própria família de E., e que a intenção do mesmo é ocultar esta relação por motivos óbvios.” 2.1
2.1 E quanto ao fato do autor fazer julgamentos claramente pessoais de embasamento nulos a respeito do próprio E.?? E quais seriam os tais motivos óbvios?
3 É preciso que fique claro que à época de escrita deste texto, era bastante comum o uso da expressão “dar trato às bolas”, com a respectiva última palavra referindo-se a cabeça, e não a outro membro tão contemplado por gírias nos dias atuais.
4 Há aqui uma incoerência que pode perturbar olhos mais sensíveis. O fato é que o autor, de índole bastante excêntrica, permitiu a tradução de suas obras do francês apenas se fosse respeitada a condição de se manter o “Mr” de Monsieur, ao invés do óbvio “Sr” do português. Segundo ele, seria uma boa forma de “manter viva, mesmo através de uma pequena chama, a supremacia e a graça do idioma soberbo que é a querida língua dos francos.” É de conhecimento comum o rigor dos franceses com sua língua-mãe. (N. do E).

domingo, abril 06, 2008

TRAPALIUM - (I) - 2.ª parte

Memórias póstumas de um amnésico que ainda vive

Cheguei às memórias de E. de uma forma inesperada e absolutamente casual. Faziam anos que não chegava a estes ouvidos doentes qualquer notícia ou alusão a sua pessoa, de modo que meu posicionamento em relação ao caso todo era de completa indiferença, ou antes, de esquecimento total. A presença absurda da figura de E. havia esvaecido dos complexos andaimes da construção histórica de minhas lembranças; era um caso curioso para confirmar uma velha sabedoria científica, ainda em voga em minha época, a dizer que a mente se ocupa daquilo que lhe é mais imediato. Os homens da ciência, desta feita, e nem mesmo os sábios, poderiam dizer então que estranhos alinhamentos configuraram o rosto do homem em minhas imagens internas naquele dia chuvoso. Existem enigmas na face da humanidade que esperam sentados para serem devorados por uma mente mais precisa, e alguns mesmo com um cérebro bem ocupado de seus mistérios, tendem a se revelar mais resistentes, mais ardorosos ou impenetráveis. A chuva propende a aparecer nestes contextos com um papel ameaçador; tal qual como um caçador silencioso, ela cria em torno de si um vasto silêncio que compreende apenas os ruídos internos de sua existência, como as batidas do coração do caçador ou os estalos dos pingos caindo pelas calhas, janelas e ruas. Existe algo de tenso emanando dum ambiente chuvoso, algo que, se fomentado por circunstâncias extraordinárias em almas sensíveis, pode elevar e direcionar a impressão e disposição destes espíritos para o limite do esgotamento emocional; a espera e a iminência de um perigo próximo tendem a se tornar verdades incontestáveis a estes elementos. Era neste agrupamento de detalhes que se passou aqueles meus momentos sentados à escrivaninha, em que repentinamente o rosto de E. formou-se claro em minha cabeça, e fui assaltado vivamente por sua presença. Com o vívido sentimento de urgência e alerta, intensificado pelos estalos provenientes de minha janela assolada por pingos fortes, fiquei a espera de qualquer coisa de fantástico, que poderia advir a qualquer momento a frente da porta de meu gabinete. E de fato, meus instintos mostraram-se certeiros em suas irracionais conjecturas: algumas angustiantes horas depois, enquanto escrevia uma carta a meu amigo O. sob a luz fraca de uma vela de sete dias, pude distinguir o inconfundível som dos passos coxos do mensageiro de A., que subia as escadas em seu ritmo cadenciado e musical.1 De seu rosto cadavérico, de zigomas salientes e lábios chupados pude extrair apenas um pacote enrolado em barbantes grossos.
Dispensei o pobre homem com algumas moedas e corri ao divã para melhor examinar o conteúdo de meu pacote. Desenrolei os barbantes e percebi um grosso volume com folhas soltas não encadernadas. As folhas estavam amareladas e manchadas por quaisquer substâncias não reconhecíveis. O cheiro que saía deste estranho presente era o de algo similar ao mofo de um depósito costeiro. Logo na contracapa percebi as intenções do livro: “Aqui escrevo minhas memórias, para que fiquem conhecidas de todos aqueles que me foram preciosos durante os anos difíceis de minha ainda não descoberta liberdade”. Assinava embaixo o dono daquele rosto desenhado momentos antes em minha imaginação.
Não havia motivos para aquele pacote estar em minhas mãos. Nunca fui próximo de E. ou nem algo parecido com “aqueles que me foram preciosos”. Na época em que sua pessoa figurava entre os círculos fechados do mundo jurídico, eu mantinha meus interesses focados em assuntos da mais mundana estirpe; não me atraía a companhia de homens excêntricos, em verdade eu evitava sub-repticiamente qualquer aproximação com os assuntos mais polêmicos ou motivos de discussões calorosas, o que não me impedia, porém, de ter conhecimento de todas questões mais controversas. Eu sabia, por exemplo, de vários pormenores da vida do “homem do gavião tatuado na mão”.
Tinha ele família, esposa e dois filhos, gozava de fama longa nos foros e respeitabilidade em seu meio; seus métodos irrepreensíveis causavam temeridade em colegas e inimigos de trabalho, em poucas palavras era um homem de competência indubitável na profissão que escolhera. Eu sabia que um homem com tamanha reputação não poderia ser alvo de desconfianças vãs, mas hoje, olhando sob este ângulo, percebo como conservamos, mesmo após inúmeras desventuras, uma fina camada de inocência sobre nossas carcaças gastas; a jactância é uma característica não tolerada pelos homens e estes inclinam-se à conspiração sutil para mina-la. É importante, antes de mais nada, que a altivez de outrem seja desmistificada, unicamente para que nosso espírito sinta-se em seu exato lugar no mundo. Muitos homens incomodavam-se com a repercussão impactante que E. emanava neste universo imenso das idéias e emoções humanas. Julgavam-no membro de uma máfia ou sociedade secreta, idéia que não desprezei de imediato, mas que também, a partir de, não conjeturei maiores raciocínios. E. gerava a impressão de ser homem rico; andava com estes utensílios que fazem abastado um homem aos olhos dos famintos curiosos, anéis de pedras brilhantes, correntes excêntricas, relógios de um metal reluzente e de interessantes formatos, o carro do ano, valises de couro legítimo, entre outras quinquilharias. Sabia eu entretanto que ele não chefiava ou estava a frente de seu negócio; tinha apenas o título de sócio minoritário do escritório aonde trabalhava, donde seu companheiro era o senhor Michaelis, advogado trabalhista com bom capital e artimanhas gatunas. O escritório tinha contrato de exclusividade com um desses grandes bancos de nossa época, cujos montantes não deixavam nada a desejar a nenhuma companhia particular do ramo. A principal função do estabelecimento, locado num edifício luxuoso mas um tanto decadente no centro de nossa cidade, era a de prestar auxílio de todo caráter jurídico nas transações processuais que corriam ao longo de seus conflitos, principalmente trabalhistas. Seguia-se a lenda, em prol de E., de que este nunca perdera sequer uma causa em favor do banco, o que o colocava embalado como uma “criança prodígio” nos braços da instituição monetária. Tais lendas, a mim, homem de simplória, mas sagaz perspicácia, não afetavam; tinha suficientemente os pés cravados no chão para desvencilhar meus julgamentos de qualquer proeza que sabia impossível a qualquer ser humano: os exageros fazem parte dos devaneios das pessoas comuns, parecem alimentar seus ensejos secretos pela aventura e pelo reforço da negação da possibilidade de um mundo sem heróis; é o eterno desejo de romance, de ilusão, que permeia todos aqueles que puseram a cabeça para fora do ventre materno. De forma que não me mostrava particularmente fascinado por este aspecto da aura que envolvia E. O que de fato fez ele objeto de minha curiosidade e estupefação foi o que ocorreu depois, no final, ato que permaneceu um mistério para todos por anos a fio, até o momento em que, por um golpe misterioso do acaso, suas lembranças caíram-me nas mãos como um pássaro que subitamente pousa em nossos ombros, sem que façamos nada para lhe conquistar a atenção. As memórias, contudo, nada me revelaram sobre os acontecimentos posteriores ao grande final da saga de E. em nossa província. Parece-me que todos eventos ulteriores nada tinham a acrescentar àquela personalidade. Os reais motivos de seu ato conclusivo também permanecem obscuros, o que provavelmente faria destes papéis algo nada atrativo para os esfomeados intelectos dos bisbilhoteiros que bicavam cada migalha de boato nos tempos dos rumores a propósito de E. Devo ressaltar aqui que muita coisa que irá se revelar tampouco desperte interesse na família do homem, pois muitos dos detalhes, como vim mais tarde a descobrir por meios que não compete a esta narrativa abordar, já eram conhecidos dos membros mais próximos de E., fato curioso, pois isso deixa margem para que indagamos com maior seriedade quem seriam “aqueles que me foram preciosos durante os anos difíceis de minha ainda não descoberta liberdade”.
Sem mais retardamentos, proponho-me a narrar o conteúdo do misterioso encarte que tive em mãos. Não me demorarei; os detalhes introdutórios já me serviram para desanuviar os pontos cruciais da história, aqueles que permitirão com que se entendam os alicerces da história de E., as peculiaridades do caso e como ele foi deixado no momento em que o homem desapareceu por completo de nosso cenário. Não obstante, ressalto o fato de que não exporei as memórias conforme estão grafadas no original; tal empreendimento demandaria muito tempo e várias páginas – o que acho desnecessário -, de modo que narrarei resumidamente tudo o que pude apreender. Tal método me sai mais cômodo e, além de tudo, deixa-me em posição de segurança mais ampla no que concerne à narrativa, pois acredito fielmente na isenção de minha capacidade de análise, esta que é, aliás, muito minuciosa. A primeira coisa a se dizer é que E. era realmente pessoa de extraordinária competência. Viveu a infância como um nômade, morando ora numa cidade, ora noutra, em decorrência do emprego de seu pai. Suas notas no colégio não eram nada notáveis; acumulou uma ou outra reprovação e atrasos na periodicidade discente. Não passou no primeiro exame de admissão para a universidade. Nada poderia revelar, neste sentido, sua propensão à eficiência profissional e sua capacidade para abstrair dos infortúnios comuns ao cotidiano uma espécie de metodologia de trabalho bastante apropriada, que dava conta de quaisquer desafios que apareciam, seja em qualquer ramo que escolhesse. A olhos atentos, porém, outras características poderiam dar conta de uma explicação sensata à tal ocorrência. A primeira delas é um relatório anexado ao livro, que demonstra os resultados de uma avaliação feita quando da saída do tenente E. de sua experiência no exército; o formulário apresentava discriminados diversos itens de avaliação, e numa coluna do lado, o espaço para que se pusesse o respectivo resultado, um de quatro possíveis, “excelente”, “ótimo”, “regular” e “ruim”. Os quesitos eram os mais variados possíveis e dividiam-se em quatro categorias distintas. Entre os mais relevantes, destaco “agilidade”, “espírito de cooperação”, “trabalho em equipe”, “iniciativa” etc. Foi surpreendente constatar que, com a exceção de dois quesitos, E. obtivera “excelente” em todo o resto. As exceções também não deixavam nada a desejar: “estabilidade emocional” e “pontualidade” ganharam um “ótimo”. É importante neste ponto que eu deixe registrado que no quesito “caráter”, E., além de ganhar um “excelente”, recebera uma observação especial aclamando sua “extraordinária confiabilidade, senso de dever, ética e postura humana”. Outro fator relevante é sua obsessiva organização pessoal. E. era daquele grupo de homens que, de braços dados com a vaidade, apresentam inopinado senso de responsabilidade por seus hábitos mais singulares e pequenos, como o posicionamento de um porta-retrato em cima de um criado-mudo, ou a ordem detalhada de camisas e ternos dentro do armário pessoal. A obsessão com limpeza também é membro desta família de particularidades, e nosso ilustre homem tinha a casa impecável, começando pelas folhas dobradas em v do papel higiênico no rolo do banheiro, até as insistentes passadas de pano molhado e cera pelo piso de tábua corrida. A posição do porta-retrato de que falei a pouco é bastante modelar: posso ver a cena em que E., enquanto arruma a casa, mexe o objeto um pouco para esquerda, depois torna-o um tanto para a direita, e depois de refeitos umas tantas vezes o processo, parece se contentar com a posição exata visualizada em sua mente configurada no ambiente externo. Estas minúcias não arrolam no inventário dos homens insignificantes, de tal forma que é plausível concluir que E. transportaria seu precioso dom de esforço e perfeccionismo para a fonte de seus ganhos pessoais.
(...)
1 Não consigo entender ainda como os passos de um coxo podem ser musicais. Procurei algumas referências, e até consegui encontrar qualquer paralelo entre os passos insanos de Donald O´Connor em Cantando na Chuva e o sombrio personagem do autor.