quinta-feira, maio 03, 2007

Futum (primeira versão)

“Can't get the stink off
He's been hanging round for days
Comes like a comet
Suckered you but not your friends
One day he'll get to you
And teach you how to be a holy cow”
-Just, Radiohead-

“Alguma coisa fede por aqui”, pensou, e instintivamente virou a sola do sapato pra ver se havia pisado em alguma merda. O sapato estava gasto embaixo e até havia um local em que estava furado, exibindo a meia amarelada. Nem sempre fora assim, era um homem que zelava por suas vaidades, e entre estas, encontrava-se o bem-estar de sentir-se elegantemente vestido e bem arrumado, com todas suas peças corporais em ordem. No entanto, há muito esquecera desta característica de sua personalidade.
Olhou o sapato franzindo a testa. Nada. Cheirou então o sovaco, mas havia apenas o odor enfraquecido de seu desodorante habitual. Ao menos sua higiene conservava-se ainda motivo de preocupação, apesar dos cabelos desarrumados e das profundas olheiras. Mas e então? Em última hipótese, ergueu as pernas pro alto e afundou a cabeça lá pros lados do pinto. Era um instrumento morto, bem sabia ele, que não cantava sequer uma canção que alegrasse as mocinhas como o seu violão já fizera num luau qualquer numa praia qualquer durante sua juventude. Deu umas boas fungadas e nada percebendo, olhou em volta com uma expressão inquisitiva. O quarto estava revirado de cima a baixo, mas não havia nada que pudesse denunciar o fedor que sentia. Vasculhou tudo, foi até o banheiro, inspecionou a privada, o ralo, no entanto tudo estava em ordem, apesar da desordem desleixada do recinto. Tentou seguir o rastro do cheiro, mas era impossível; ele estava em todo lugar, como se o próprio ar desse origem à caatinga. “Deve vir de fora”, e então saiu do apê e seguiu pelo corredor em direção da escada. Mesma coisa. Nenhuma pista, nenhum apartamento aparentemente culpado. “Esqueça, que se dane”. Voltou, deitou no sofá e ligou a TV. As persianas fechadas cediam a luz dela uma dimensão assustadora, como um ator que diminui a intensidade de sua representação para focar a atenção da platéia em seu companheiro de palco. As paredes enlameavam-se com sombras sinistras, movendo-se desordenadamente.
Permaneceu ali por alguns minutos, zapeando os canais com desinteresse tentando esquecer o cheiro. Conseguiu alcançar certa sonolência, naquele grau em que nem bem se está dormindo nem acordado. Os pensamentos vinham-lhe e fugiam, manipulados suavemente com prazerosa indolência. Tudo o que poderia desejar, um sereno estado de espírito, depois de mais uma noite de inferno e caos. Mas súbito sua mente desconfigurou-se num emaranhado de caminhos sem sentido e tudo o que lhe preenchia era um tamanho desconforto que logo foi lhe despertando. Ainda de olhos fechados, sentiu o nariz arder e percebeu que o fedor estava ali, mais forte, mais persistente e tomava conta não só do ar, como antes, mas de si próprio. Esboçou uma careta, virou-se de lado e tentou achar uma posição cômoda que pudesse lhe retomar o sono, mas o cheiro não sumia; persistia como um inimigo invisível, obstinado e feroz que esperava o momento adequado pra desferir o golpe fatal. Inquieto, parecia-lhe que o fedor lhe invadia e tornava tudo dentro de si um grande vazio, um vazio que começava a se espalhar do peito e demorava-se especialmente na garganta, como algo entalado. Estava dentro de si, vinha de si. Esta constatação horrorizou-lhe, o que fez disparar seu coração subitamente, ao modo dum animal que pressente o perigo imediato e sua adrenalina dispara pelas veias. Virou-se novamente e balançou a cabeça, assustado. Lutava.
Algo mais mudara. Tudo estava estagnado dentro do apê, abafado e silencioso. A Tv agora era apenas feixes de luz sem vida, acuada por toda configuração do ambiente. O fedor já não era mais apenas um odor, sim, era o odor e o silêncio e o tempo que parou e as luzes sem vida e todo o apê... era uma presença. E ele sentia esta presença crescer ao seu redor a lhe espreitar, a bafejar em sua nuca um hálito frio e podre. Tentou se concentrar o máximo que pôde, desviar de seus pensamentos o fato de ali estar aquela presença provocando toda sorte de desconfortos físicos e mentais, tentou com toda sua força de vontade, mas com o coração em desalinho, a testa suando e uma extrema sensação de pânico fatalista, era impossível; pouco escapava e logo retornava ao incômodo. Pensava, “Não, não há nada aqui! Não tem ninguém ao meu redor, ninguém escondido atrás daquela cortina, nem mesmo embaixo da cama!” Mas sim, estava ali, ele sentia, era mais forte que qualquer sentimento de coragem que poderia haver dentro dele ou mesmo de lucidez, pois no meio de seu ataque ainda mantinha a consciência de que aquela sensação de que algo que só poderia ser categorizado como sobrenatural estava lhe observando, tentando invadir sua mente impiedosamente e sem dúvida com propósitos malignos. “Deus, que coisa ruim...só um pouco de sono, descanso...depois será diferente!” Mas fraquejava. Era impossível. Em dado momento a angústia e a consciência da presença eram tão fortes que se viu forçado a abrir os olhos e sentar-se no sofá. Pensou que ao fazer isto finalmente iria ver a figura sinistra de guarda no canto da sala, mas nada havia. Principiara um certo dilema; sentia falta de ar, mas quando respirava mais fortemente para suprir esta falta, o fedor vinha-lhe com toda intensidade e crueldade. “MEU DEUS, O QUE É ISSO?”
Parecia que o terror atingia seu ápice e encolhendo o corpo com as mãos juntas percebeu que estas se encontravam frias e úmidas. Pingos de suor escorriam de suas têmporas. A partir disso, sentiu uma descarga de pavor em seu peito, lançou um gemido fraco e espontâneo ao teto e estremeceu. Logo o lado esquerdo de seu corpo parecia estar inanimado, como se algo estivesse possuindo-o aos poucos. Sabia que uma medida imediata deveria ser tomada ou algo de assustador e inominável iria tomar parte, mesmo ele não fazendo a mínima idéia do que poderia ser. Pegou a jaqueta e correu a porta da frente, saindo aos barrancos pela escada até o portão de entrada do prédio.
Quando saiu, o dia pálido lhe tomou de assalto e sua reação imediata foi cobrir os olhos com a mão e andar a passos apressados pela Dr. Faivre em direção da XV. Não tomou consciência de nada ou ninguém que passasse ao seu largo neste momento; o objetivo principal era apenas levantar uma perna atrás da outra para onde elas quisessem ir, de consenso que longe o máximo possível de seu apartamento. Ao chegar na esquina, dobrou e continuou na XV, na direção da Praça Osório, ainda sem levantar os olhos, mas já percebendo a recuperação parcial de sua lucidez. “É preciso pensar. É preciso pensar.” Não conseguia, porém, pensar! Logo que dava movimento aos pensamentos, imagens terríveis lhe assaltavam os olhos, via Curitiba em chamas, via homens sem rosto com enormes garras, via um carro batendo na esquina perigosamente perto de si, sentia alguém bafejando na sua nuca, pronto pra lhe agarrar os ombros e lhe atacar...
A medida mais rápida que conseguiu tomar foi parar no primeiro telefone público e discar vários números. 9090, ligação a cobrar. Enquanto esperava, virava o rosto em todas as direções, deixando os olhos rolarem pelas órbitas. Do outro lado da linha fez-se ouvir uma voz familiar.
- A-alô, Coronel? Sou eu. Coronel, eu preciso de sua ajuda...e-eu...eu não...olha, eu não estou bem, e-eu não...
O Coronel pôde enxergar as lágrimas rolando pelo telefone do outro lado da cidade. Sentiu algo de sinistro perpassar sua espinha e seu rosto contorceu-se num esgar enquanto ouvia a voz completamente alterada. Não era a voz de um homem e sim de um animal agonizante, rouca, entrecortada, suplicante, desesperada...Algo estava acontecendo! Sabia que seu amigo era propício à situações desesperadoras, mas no entanto isto ultrapassava qualquer situação imaginável. Foi completamente pego de surpresa.
- Ei, ei, o que está acontecendo, você está bem? Ouça-me!
Mas era inútil. Deixou o Coronel pendurado no gancho do telefone e saiu apressado no rumo que estava antes. No momento em que ouviu a voz do amigo, uma pontada do fedor atravessara seu nariz como se fosse uma lâmina e fê-lo arder dolorosamente. Sua vontade era de gritar, de agarrar qualquer pessoa na rua e suplicar por algo que lhe fizesse sentir confortável, algo que lhe afastasse do cheiro insuportável. Cambaleou até a Marechal Floriano e esperou o sinal abrir aos pedestres. Ao seu lado um amontoado de gente prostrava-se como estátuas rígidas, eretas, esperando uma luz acender para que levantassem os membros e marchassem. Aproximou-se dum homem vestido num terno marrom e agarrou uma de suas mangas.
- O senhor consegue sentir?
- Desculpe?
- O fedor! O cheiro...o senhor está sentindo?
O Senhor olhou o homem de cima a baixo. Vários julgamentos se processaram rapidamente em seu cérebro enquanto seus olhos o percorriam. Era um homem que deveria ter um metro e oitenta, mas curvava-se sobre o próprio corpo, como se carregasse uma pedra nas costas; o rosto estava pálido e endurecido, com os lábios tensos e puxados...o que mais lhe impressionou foram os olhos injetados, que atravessavam os seus de uma forma como nunca havia presenciado antes. Era um maluco maltrapilho. Mais um deles! Ainda bem que sua pasta estava na outra mão, longe do alcance dele.
- Não compreendo o que você está falando – sua postura permaneceu ereta, talvez até um pouco mais forçada e os punhos se cerraram.
Agarrou o senhor com mais força nas mangas, o que provocou neste uma reação brusca de desenvecilhamento, deixando-o mais assustado e perturbado. Sentiu uma bola subir por sua garganta e uma pressão nos olhos, nas têmporas, um formigamento...
- O SENHOR SENTE ESTE CHEIRO? POR FAVOR, DIGA-ME!!
O sinaleiro abriu e o senhor saiu rapidamente, notavelmente bravo, dizendo:
- Afaste-se de mim!
E sumiu na fileira de pessoas que atravessavam a rua, afundado por entre cores diversas formadas pelo conjunto de roupas que seguiam seus caminhos. Sabia, neste momento, que além de tudo que sentia, havia algo mais que o incomodava. Parecia chorar sem verter lágrimas, e seu corpo tinha espasmos como se o fizesse. Tomou algum rumo e seguiu, sem saber muito pra onde ou pra que.
O que restou em sua mente eram fragmentos de imagens que seus olhos captavam. A cada minuto as coisas se embaralhavam mais e mais e pensamentos surgiam e desapareciam sem tema certo, apenas vinham como raios alucinados mulheres segurando copos de uísque e sorrindo o homem de olhos baixos segurando um taco de sinuca encarando-o a estação Guadalupe onde dos bares á beira da rua os olhos de alguns bêbados o fitaram impiedosamente à sua passagem e levantaram-se solenemente para seguir os seus passos algum lugar perto do Largo da Ordem onde alguns mendigos e maltrapilhos vagabundos perceberam sua passagem e cristo! sabiam o que estava acontecendo e queriam lhe perseguir os passos e lhe tocar e dizer coisas ao seu ouvido mas que ele logo percebeu assustado e tentou se livrar de toda esta turba que vinha ao seu encontro, rodeando e lhe passando as mãos pelo rosto suplicando uma prece com hálito podres os bêbados segurando como rosários garrafas de cerveja um homem pelado com o pênis na mão e aí sim ele se perdeu de vez e lutou, dando socos no ar, acertando alguns transeuntes livrou-se de todos e num pânico que não poderia ser descrito por qualquer caneta ou boca humana mas apenas pelos olhos fugiu em disparada pelas ruas onde numa rua já na noite curitibana a Cruz Machado as putas desciam as bundas procurando-lhe as pegadas A Praça Tiradentes os garotos cheiravam a lata tentando lhe encontrar o rastro e se encolheu em algum lugar longe onde sentiu o odor mais forte do que jamais poderia ter sentido, pois mais longe não poderia ir e suas esperanças por fim desvaneceram e ele começou a socar as paredes e soltar lágrimas, sem saber como se mexer pra sair do lugar onde estava e tentar achar alguma solução pro seu problema como tapar o nariz com as mãos ou afundar canetas nele o que se mostrou tão inútil quanto pensar que haveria alguma forma de sair do labirinto da vida.
Quando o Coronel foi chamado pela polícia, visto que dera queixa na noite anterior pelo desaparecimento de seu amigo, sentiu-se ansioso. Correra o máximo que pôde até a delegacia. Alguns policiais lhe disseram poucas palavras, que não puderam desvendar muita coisa.
- Encontramos o sujeito deitado num banco de praça. Estava usando roupas rasgadas. Seu membro estava aparecendo. Coisa horrível.
- O sujeito é maluco. Ficamos assustados. Não é coisa comum neste ramo, se é que o Senhor Coronel me entenda.
- Onde está ele?
- Guardamos-o numa cela. Ele não mostrou qualquer resistência. Parecia mais assustado que qualquer outra coisa.
- Deixe-me vê-lo.
Aproximou-se do amigo e notara que ele estava deitado sobre a cama e visivelmente febril. Quando notou que havia chegado, pareceu ficar agitado, mas o Coronel tristemente viu em seus olhos estalados e vibrantes que ele não reconhecia sua pessoa. Não havia qualquer sinal de reconhecimento em qualquer parte de seu corpo, em verdade. Nem mesmo quando ele agarrou o Coronel pela lapela e lhe fitou profundamente dentro de sua alma e gemendo e pronunciando com dificuldade as palavras, embora com clareza, lhe disse:
- O FEDOR...O FEDOR...

4 comentários:

Rebecca Loise disse...

incrivelmente cruel! um texto chocante, pesado e belamente estruturado! amei, cara! achei do caralho! lindo, lindo, Filippo!

She Python disse...

então... bebi pacas... ainda bem que meus fieis escudeiros me deixaram em casa... hihihihihi...
beijo querido muito bom te ver e lê-lo!

She Python disse...

ô!

Vanessa. disse...

gostei dos seus contos.ficou muito legal o blog. :)