terça-feira, maio 06, 2008

Trapalium ( I ) - Parte final

Ora, não me parece crível que a passividade conste no rol de defeitos de E. Em verdade, era homem de temperamento explosivo; um tipo que, se pego num engarrafamento e deixasse um carro que vem de uma rua transversal passar a sua frente e, por safadeza, um outro carro logo atrás do beneficiado se aprouvesse da oportunidade para também passar a frente, iria sair do carro espumando, chegaria até a janela do gatuno e espancaria o vidro com veemência e os olhos em fúria, um demônio descontrolado e indignado. Um tipo que, certamente influenciado pela carga estressante de seu trabalho aliado ao perfeccionismo obsessivo, se atrapalhado pelo filho mais velho, iria descarregar o peso de sua sandália de couro no lombo do pequeno infeliz por mera impulsividade. Mas não nos precipitemos a nos pasmar com traços tão contraditórios; E. era de fato homem de ética e dedicação honráveis, e se ponderarmos um pouco que seja nas incontáveis fábulas erguidas sob a égide da pretensão de se construir uma moral humana, tão recorrente em nossos meios de educação vigentes, veremos que o impulso da agressividade não convive diretamente com os ditos valores da virtude. É a velha dicotomia do bem e do mal, não me cabe discorrer sobre tema tão longínquo. Basta deixar claro que fábulas são fábulas, e o que ocorre em nossos meios, aqui no mundo de baixo dos seres que se acotovelam, é a convivência harmônica (em certo sentido específico) de diversos e diferentes valores. Digo que é muito provável, se nos esforçarmos um pouco, imaginar um homem severo com suas obrigações morais, éticas e profissionais ser também dono de uma geniosidade perturbadora e irrequieta, propensa a desequilíbrios de vez em quando. Tinha ele gênio forte, sem dúvida, e se voltarmos a pensar em suas obsessões e dedicações, creio ser bastante coerente a figura total que compõe suas multiplicidades e variações. Do mesmo feitio, sua paixão pela arte e pela liberdade, expressas em tamanho amor pela vida e pelas aventuras tornam-se mais palpáveis.
Existe uma anedota narrada nas memórias que acho bastante emblemática e um tanto reveladora sobre os dotes amotinadores, escondidos sob a camada suave da ironia. E., quando duma abordagem em pleno centro da cidade solicitado para uma entrevista em que deveria dizer o que achava do atual governo, respondera com impropérios e expressões das mais criativas. A reportagem nunca foi ao ar, e E. gabava-se ao contar a sua família o ocorrido: encontrava ele nesta pequena insurreição motivo de garbosa jocosidade, e pelos modos como expressa o acontecimento no texto, posso adivinhar sua alma se gabando de tanta espiritualidade. Por outro lado, nada há de espirituoso nos reais significados de seu ato, no que há de mais profundo dentro das causas de suas bravatas perante às instituições políticas; aqui só permanece o perigoso sentimento da insatisfação e da marginalidade.
É neste ponto que chegamos ao acontecimento mais importante de minha narrativa, e do qual já mencionei que nada tenho a acrescentar para decifra-lo. O fato é que, a partir de certo momento, E. começou a agir de forma estranha. Nunca foi entregue a casos extra-conjugais ou não era o que se comumente designam por um “galanteador”, mas fato era que a relação com sua esposa tornava-se dia e dia mais distante. Sua atenções eram motivo de enigmas e proposições. Não se dedicava ele às tarefas conjugais, tampouco às domésticas. No trabalho, sua postura alternou-se de forma brutal: aparecia em bermudas jeans, ostentando um velho colete preto sobre o torso; cresciam o número de tatuagens na pele. Não houve, porém, queda em seu rendimento. A modificação ocorria a nível mais sutil, em degrau que despontava para os andares contíguos mas ao mesmo tempo distantes dos mais informais; transcorriam no plano comportamental, e este tipo de concatenação de sevícias (para o escalão corporativista) era simplesmente intolerável. Entretanto, devido a enorme popularidade de E., nada era feito. Ninguém tinha coragem de se meter no caminho do “homem com o gavião na mão.” Esta situação permaneceu por meses a fio; sua esposa, ao demandar explicações ou, daquele modo peculiar das mulheres, querer descobrir nas entrelinhas o segredo que lhes desespere os sentidos (quando na verdade, o que esperam é que mais e mais desespero lhe advenham, conquanto menos sentido tenham), recebia apenas remissas vazias e inconclusivas. O Mr. Michaelis nada dizia. Contentava-lhe apenas que sua cadeira de couro ainda possuísse a graciosa forma de suas ancas e o bolso o tamanho apropriado para o dinheiro que vinha diretamente de sua conta todo final de mês.5
E então sucedeu-se o misterioso ato final da peça que E. vinha orquestrando sabe Deus desde quando. Num dia friorento de julho, E. simplesmente desapareceu de vez de nossa província, sem deixar qualquer rastro. A família acordara sem a presença do progenitor e guardião. Não estava ele na cama, não estava no banheiro fazendo a barba impecavelmente, nem no corredor passando seu terno ou vestindo-se com o alinho habitual. Não havia tampouco suas roupas. Tudo fora levado. Ninguém percebera sua fuga. E desde então, nada ficou sabido de E., nem sobre seu paradeiro, nem de suas posteriores aventuras por esta terra estranha e imensurável. Nada até hoje, quando seguro em minhas mãos as memórias. E mesmo com este sinal de que, sem dúvidas, em algum lugar o homem ainda passeia com suas tatuagens e o charme de seu mistério estampado em seu rosto, nada se revela de sua atual situação ou de suas motivações. É aqui que acabam, do mesmo jeito que começaram, suas parcas revelações, que mostram-se mais de cunho meditativo ou psicológico que efetivas.
Não obstante, devo acrescentar, talvez para espanto de meus leitores, quem sentiu mais a falta de E. Se os fatos fossem outros, seria a última pessoa que poderíamos esperar - o nosso ilustre Mr. Michaelis. Pois a fuga de E. não se deu de forma simples e desprovida assim de graça; o fato em si, esta fuga repentina, o homem que some da noite para o dia abandonando sua família não constitui motivo de tanto falatório; esta espécie de labor deixemos às donas de casa e às fofoqueiras beatas de nossa santíssima igreja; a verdadeira polêmica ficou pelo grand finale profissional de E., o qual se revela tão inesperado que gera as mais prodigiosas reações naqueles velhos círculos que já comentei. Pois E., durante nove meses, pôs-se a dedicar sua competência no mais árduo e difícil dos trabalhos: a gatunagem, e de forma que não me proponho entrar em detalhes aqui, desviou de seu principal cliente, o banco, uma quantia com zeros suficientes para fazer inveja a qualquer homem com o nome destacado nestas revistas de economia. O dinheiro nunca foi rastreado. E podemos adivinhar em que maus lençóis ficou o renomado Mr. Michaelis.
Em não muito diferente situação ficou a esposa e os filhos. Foram anos na justiça para que se despertasse a piedade de um juiz em condescender a não-obrigatoriedade do pagamento das dívidas a uma mulher casada com comunhão de bens.
Assim, registro o final desta fantástica narrativa: obrigo-me a revelar que não descobri o verdadeiro destinatário do envelope que me chegou em mãos, o que seria de muito bom grado para saciar os anseios de minha imaginação. Digo desde já que esforcei-me por encontrar a revelação de tal mistério, mas mesmo os funcionários do serviço postal não souberam me dizer; a papelada toda foi parar em minha residência à causa de confusões burocráticas e erros dos mais baixos escalões administrativos. O mensageiro por parte do remetente havia dado um endereço, o mensageiro por parte do serviço postal ouvira outro, e nisto, acrescido da desinformação da pessoa a quem se destinava o pacote e à fraca memória do funcionário, residia toda o imbróglio. Acredito, no fundo de minhas faculdades mais caras, que o pacote venho a pessoa certa; que de certa forma, venho como uma mensagem, e a maneira como chegou não deixou nada a dever ao jeito como tudo começou – envolto em mistério e cheio daquele sentimento nativo dos românticos, o velho sabor da despedida que nunca diz adeus.
(...)
5Atenta-se para o que parece ser mais um julgamento pessoal do autor.