Obs.:
não há fim, é mero exercício formal... MESMO.
“A
descarga...
a descarga... o que era a descarga?”
‘Leve sussurrar vindo de um fundo
obscuro, ditando frases tentadoras, visionárias do desejo mais entranho. Tudo
muito quieto, muito quieto, mas logo arfando para um ritmo maior e mais
abrangente, indo e voltando e logo só indo, num crescendo sombrio e desconexo,
mas tão compreensível para o inconsciente, como se, bons e velhos amigos,
pensamento e vontade. O redemoinho se iniciando, misturando-se a tudo o que ali
flutua e cai devido a qualquer ação externa, manifestando-se cada vez mais
intenso, cada vez mais incontrolável, vitorioso de vida própria, indecente. O
ciclo se completando, o serviço completo, fascinante é o processo, é fascinante
o ribombar veneroso das paixões esquecidas, o redemoinho crescendo, aumentando,
princípio da deblateração pegajosa, a tudo castigar, a tudo flagelar sem
julgar, porque não há escapatória, veio à tona, não tem culpa se foi acionada,
porque justamente e unicamente foi e agora que venha as consequências e as
consequências são essas, que se dane, a não ser que todo o mecanismo esteja com
defeito, aí é um deus nos acuda e que tudo vá pra puta que o pariu e se foda,
pois no mais tudo é e jamais se para, o vortex fustigante é o que é e que se
aguente agora o que ele acomete. Girando e girando, no mesmo lugar e em todos
ao mesmo tempo, foi-se e vem, violentando paredes brancas ou amareladas,
depende do serviço diário de escoamento, são fluidos e pensamentos, fluidos e
pensamentos, voando e aterrizando, dizendo bom-dia e adeus, tristes e inertes,
imóveis e insanos, esquecimentos incorpóreos atravessando espelhos para baterem
de frente com mais espelhos , refletindo para sempre uma imagem distorcida e
irreal de acordo com o gosto da bizarra planície refletora, a imagem distorcida
e irreal mas que de certa forma sempre foi e é fiel e mais displicente cruzada
da verdade no caminho da dor e do instinto, girando e girando, voltando,
violência, dor, rebentação, caindo e subindo, a fúria esvanecendo, perdendo o
fôlego, como sempre a calmaria antes da tempestade e a tempestade antes da
calmaria, pois sim, o estado supra-histérico não se sustenta com suas próprias
bases, não se não vier o dedo no botão novamente acionando o fundo gutural, e
assim encerra-se o espetáculo cruel e fabuloso do redemoinho angustiado,
caindo, despedaçando-se, indo e voltando lentamente, sumindo, evaporando-se
numa onda vertiginosa e sugada pelo buraco escuro e impenetrável de onde veio,
para se esconder novamente e aspirar o dia de seu retorno esplendoroso, o
caminho da revelação e verdade... rôôôôôuuuuu... shiiiiiii... blon-blon, croc.
Minha mente.
Não
posso definir minha mente, na realidade, ninguém pode. Mas também não posso
definir por que penso nela quando medito sobre uma descarga ruidosa (eu disse “vaidosa”?)
e atraente – a descarga acolhedora de meu nobre lar. Esses tipos de
pensamentos, julgo eu, devem vir naturalmente quando se é um vagabundo, quando
se é uma pessoa da qual nada brota e floresce, no meu caso, como gosto de
definir, um boêmio clandestino, pois meu modo de vida enoja até mesmo a boêmia
clássica, nobres poetas e escritores com lastimosos uivos de desespero na
noite, lançados à eternidade (ou não).
No
mais, penso que minha atitude nada é mais também do que um grito de desespero,
um berro estridente, pegajoso, rastejante, cru e agonizante, com o fôlego do
tamanho do mundo. No começo, presumo, devia ser um grito cintilante como o
choro de um recém-nascido, mas, à medida em que os anos foram se erguendo, uma angústia
e melancolia atravessava a razão e desfigurava uma inocência plástica e que,
agora, neste exato momento, descubro eu nada ser mais do que a perda de uma inocência
verdadeira e bastante palpável (ou não mais, obviamente). Meu desespero nascia
do confronto rebelde com a realidade, realidade esta que, em minha ingenuidade,
tentara moldar a meu próprio gosto, e, por esse mesmo motivo, me afundava, cada
vez mais num poço obscuro e incongruente. É nesse poço que agora estou, talvez
me erguendo glorioso, talvez apodrecendo, só deus sabe. A verdade é que minha
personalidade extremista me permitia ter pensamentos do tipo “para conseguir
sair do poço é preciso deixar-se ir até o fundo dele”. Mais tarde, descobriria
eu que tal ideia não era fruto da referida adjetivação de personalidade, mas,
sim, de outra qualidade dessa mesma personalidade, a saber, o experimentalismo,
a intensidade e o “emocionalismo”. Sim, sou um entusiasta da alma, mas de sua
miséria, podridão e o que mais for, me perdoem o excesso de baboseira.
Contudo,
penso que minhas palavras são obscuras, assumo, e enfadonhas, então me deixem
ser mais objetivo.
Nasci
na América do Sul, na capital do meu país (e sempre achei isso tamanhamente
relevante, apesar de nunca achar motivo para tal), país que me induziu a
acreditar, por meio de um processo inevitável e um tanto evidente de
transferência de cultura inata), que seríamos a nação do futuro, uma “nação em
desenvolvimento a pleno vapor”, um troço meio revolução industrial mequetrefe,
e que só mostrou até então toda sorte de lamentos, sofrimentos, angústias,
esculhambação, surrealismos ideológicos e misérias possíveis dentro de um
espectro considerável de possibilidades dentro da condição humana. Somos aqui
uma amostra razoável de conformismo bovino, a mim um dos ápices da degeneração
moral e do caráter humano, embora nenhuma dose de inconformismo tenha
modificado consideravelmente porra nenhuma por estes lados, talvez com exceção
do fim da Ditadura, ainda que desconfio seriamente de que tenha sido um
processo ocorrido somente por forças que recuaram como uma onda, naturalmente,
com o mar, e não “pela vontade e soberania do povo”.
Oh, sim, desculpem,
desculpem, sou hiperbólico, eu sei, há de se considerar que “shit happens and happens all the time”
em todos os lugares do mundo e tal e tal etc. Ahhh, mas, exagerado ou não, não
existe nada como o conformismo brasileiro e o selo pré-revelador e
universalmente abrangente da ideia de povo brasileiro. Acreditem, como bom
antropólogo que sou, creio piamente que uns tratados acadêmicos realmente
sérios e dedicados deveriam ser empenhados na tarefa de desvendar e desmembrar
historicamente os conceitos e característica inerentes desse conformismo sui generis, pois trata-se de algo como
um Quasímodo cultural: repelente e ao mesmo tempo atraente. E o tal selo, “povo
feliz”, “povo sofrido, mas festeiro”. Bah! É inevitável pensar na minha
descarga novamente. Enfim.
O fato de ter nascido
na capital do Brasil, em verdade, não simboliza porra nenhuma, mesmo porque
logo me mudei para o sul do país, onde pude ter uma infância melancólica, porém
feliz (e que esses tempos não me voltassem, como eram bons!), uma adolescência
conturbada e uma formação não menos duvidosa e questionável. Lembro-me com
nostalgia de brincadeiras ativas num parquinho, de corridas intermináveis por
túneis claros, de risadas espontâneas, gratuitas, mas verdadeiras. Era um
moleque saudável, embora meus amigos infantos, por vezes, me acusassem de “mimado”
e “chorão”. Talvez fosse o fato de todos eles serem mais velhos e eu um garoto
que recebera um excesso de carinho e amor de que nunca poderei reclamar; cresci
sem lutar, e isso é uma dádiva que meus pais puderam me aliviar. Entretanto, as
provações que meus companheiros me infligiram foram-me benéficas, de forma a
começarem o endurecimento de meu caráter e prepararem minha percepção para as
intemperâncias de um mundo vindouro. Tanto que, quando adolescente, já estava
um passo à frente deles, sacerdócio do experimentalismo, lançando minha alma de
encontro à curiosidade, manejando diferentes realizações perscrutadoras,
confrontando a prudência, me jogando numa roleta e me deixando levar sem
preocupação por caminhos tortuosos e escuros, em busca de uma nebulosa e
indistinta revelação, da loucura, procurando por meios não aconselháveis o ser
incipiente que deveria ser acordado dentro de mim. O ser ignóbil, estático, que
agora se exterioriza. Foi um longo caminho até a transfiguração da monstruosidade
decrépita e decadente de hoje. E eu nem vi e percebi o começo, não tive
consciência de tudo o que acontecia ao meu redor, porque não queria ter, e
quando dei por mim, já estava envolvido até as entranhas nesse perjúrio,
afundando nos entraves que eu mesmo montara, já acabado, destruído, humilhado,
embora não me arrependesse de nada, nenhum ato, atitude, sorriso de escárnio,
choro, peripécias, pois, talvez a mais nobre das vivências humanas seja a
humilhação. E, claro, não se pode ir contra o que se é. E eu sou o espírito
inquieto, rebelde, contraditório, inconsequente. Imprudência é um estilo de
vida. Talvez não seja meramente um espírito indolente, mas o fato de se
entregar a ele, em toda essência e crueza. Existe uma corrente que me prende
justamente a esse espírito, violado, violentado, arrastado por toda uma geração
que cresce perdida, preguiçosa dentro de si, caga-regras hipócrita. Uma pessoa
impulsiva, vivendo emoções intensas, agarradas de modo apaixonado, contando os
minutos até o dia irascível em que me porei abaixo num leito jocoso, a lançar
preces aos tempos que me precederam (eu disse “pertenceram”?). Caminhei sobre
brasas impiedosas, mas meus pés nada sentiam – contudo, as cicatrizes me
queimavam vez ou outra, lembrando-me de que ali, em passado não muito distante,
houveram brasas. É mais ou menos
assim que funciona: não me arrependo de minha triste peregrinação, minha
caminhada em que não respeitei nenhuma regra, desdenhei a moral sem sobre ela
sobrepujar a minha própria, mesmo porque nunca a tive pessoalmente definida de
verdade, experimentei inúmeros desafios à ordem, desvirtuando-a gentilmente
(vejam bem) e nunca pensando nas ameaças de perdição e desacato. Não me
arrependo, contudo, vezes ao meu redor me cobram, talvez para sempre, uma
sensatez, coisa esta que virá algum dia – ou nunca – para justificar toda a
balbúrdia e descaso em minha alma pelo que move as instituições e o próprio
mundo. Essas vozes me perturbam e me julgam e, sobretudo, me condenam. É o
pequeno dilema moroso de minha existência.
Eu sou o herói de minha
própria vida. Em meu quarto mental, os pôsteres pregados na parede são de mim
mesmo.’
E assim, sentado na
privada à noite, chorando, Alexandre Daphilus imaginou-se mentalmente falando a
um interlocutor (ou um fã) hipotético, logo após um dia em que, na repartição
pública em que trabalhava invariavelmente das 8 às 18, levou uma mijada épica
(com direito à lição de moral meritocrática) e perdeu sua namorada para um cara
que, julgava, era muito mais viril e bem revolvido do que ele.